Jáder Santana é jornalista e mestre em Estudos da Tradução pela Universidade Federal do Ceará
Jáder Santana é jornalista e mestre em Estudos da Tradução pela Universidade Federal do Ceará
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É interessante observar como certas abordagens artísticas de temas caros ao pensamento progressista acabam gerando debates acalorados. Nas últimas semanas, depois que "Pobres criaturas", o último filme do grego Yorgos Lanthimos, estreou nos cinemas brasileiros, algumas das aproximações do realizador a esses temas confundiram parte da audiência e fizeram emergir traços de um conservadorismo que muitos se esforçam por enterrar.
Houve críticas sobre o excesso de nudez da protagonista, que passa parte considerável dos 140 minutos do filme com pouca ou nenhuma roupa. Falou-se de objetificação e misoginia na exploração e exibição do corpo feminino — o longa é dirigido por um homem, afinal. Reclamou-se dos nus frontais — sempre da atriz, quase nunca dos atores. Problematizou-se, em resumo, a investigação física de um tópico sobre o qual já parecíamos ter pactuado.
E aí veio o sexo, farto mas oportuno, abundante mas nunca explícito, que incomodou pelo excesso de carnes e porque, no roteiro de Tony McNamara (baseado em romance de 1992 do escocês Alasdair Gray), a personagem enredada em uma odisséia hiperbólica de prazer é uma mulher com cérebro de bebê. O corpo é maduro, as curvas estão desenhadas, pelos cobrem suas partes, mas a mente que governa a dinâmica desses membros à procura de constante gozo é a de uma criança.
Uma resenha publicada a respeito do livro no qual se baseia o argumento do filme se refere à obra como "engraçada, suja e inteligente" ("a funny, dirty, brainy book"). Tão habituados estamos à vigilância constante da ideologia que nos abraça e condena, que nos desacostumamos a encontrar, lado a lado, misturados, inseparavelmente atados, o humor, a sujeira e o intelecto. O belo não é sujo. O sujo não é culto. O culto não é sexo. A lista de associações proibidas pelas regras do politicamente correto é infinita e operante.
Nesse cenário de restrições éticas que cruzam a política e chegam ao campo das artes, do humor e, em última instância, do deleite e da fruição da audiência, "Pobres criaturas", com sua exibição ostensiva de corpo e sexo (vividos por uma mulher dirigida por um homem), com sua falta de pudores em exibir uma criança às voltas com os impulsos naturais de sua sexualidade incipiente e com a descoberta do potencial de prazer em seu corpo, confunde o público, embaralhando convicções de um ativismo que, na imposição de limites até para as artes, se mostra fundamentalmente autofágico.
Na sessão de cinema em que assisti ao filme, ouvi mais de um comentário — meio sussurrado, meio dito em voz alta — de pessoas incomodadas com o riso dos outros frente à compulsão por sexo da personagem: "Mas ela tem a cabeça de uma criança!", ou "Esse filme é todo errado!". Depois, nas redes sociais, vi que há toda uma parcela de resenhistas ocasionais zangada com a atriz, o diretor e a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, que indicou o longa ao Oscar 2024 em onze categorias, incluindo melhor filme e, veja só, melhores diretor e atriz.
As indicações não deixam de chamar atenção, sobretudo quando levamos em conta que, embora esteja empreendendo esforços hercúleos de atualização, a Academia se consolidou como organização conservadora e pouco afeita a experimentações radicais no campo das artes. Mas é de se pensar que, se até eles são capazes, vez por outra, de sinalizar para a revisão de seus critérios éticos e estéticos, nós também, pobres criaturas tolhidas pelo medo do cancelamento, podemos usufruir da arte pelo que ela é, e não pelo que ela supostamente representa.
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