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E se não vivêssemos em crise?
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Juliana Diniz é doutora em Direito pela USP e professora da Universidade Federal do Ceará. É editora do site bemdito.jor

E se não vivêssemos em crise?

Tipo Opinião

A verdade é que nunca trabalhamos tanto quanto na pandemia. O vírus tumultuou não só as nossas rotinas pessoais e familiares, como também turvou a separação entre o universo doméstico e o do trabalho.

O tal do home office tem suas facilidades, assim como suas maldições, e ainda não estou certa da exata dimensão do que perdemos e do que ganhamos com essa mudança.

Passei a dar aulas no escritório de casa, com o ruído das crianças ao fundo, e, depois de algumas interrupções constrangidas, resolvi abrir mão de antigos protocolos: tornou-se rotineiro que meus filhos aparecessem no quadrado da tela para dar um olá aos alunos.

Neste um ano e meio de pandemia, também fui obrigada a pensar diuturnamente na política e aprendi a sobreviver a toda sorte de absurdos.

O medo de morrer de covid só não foi maior do que o medo de ver o país sucumbir a Bolsonaro. É uma outra espécie de doença, uma ansiedade constante, uma mistura de ressentimento, angústia e overdose de crise.

Viver sob Bolsonaro é como alimentar uma doença que causa mal porque drena nossa alegria de viver, fazendo com que percamos a sensação de juventude ou de ter um futuro. Não imagino infelicidade maior, por isso o mundo nos tem tanta pena.

Mas nem tudo é desgraça e melancolia. Depois de escrever na semana passada sobre a moléstia de estar obcecada pelo presidente, depois de quase um ano e meio de trabalho ininterrupto, pude desligar durante alguns dias, aproveitando o intervalo entre os semestres do calendário acadêmico da Universidade.

Já são sete dias que deixo minha atenção divagar em um cenário novo, muito longe de casa. Assim, certa de que divago como quem se cura de uma longa enfermidade, tenho me ocupado desse experimento prazeroso de estar em suspenso e de pensar em como seria a vida se não estivéssemos imersos em sucessivas crises.

As primeiras impressões são maravilhosas: estar quase há sete dias longe do noticiário e suas mazelas relaxou a musculatura do meu pescoço, melhorou a qualidade do meu sono e reavivou meus sentidos para a vida pequena que acontece nas esquinas.

Como se um súbito tônico corresse pelas veias, senti a saúde revigorar, convidando todo corpo à imersão na delícia do intenso agora. Por que não aproveitar o presente absoluto?

Assim passei a dar conta, em muitas caminhadas sem destino, do cheiro de manteiga no pão que perfuma a padaria no fim de tarde e me pus a observar o movimento da praça, observando os passos lentos de senhoras aposentadas e os passos rápidos das crianças rumo ao pequeno parque.

A vida longe da crise é suave, mais lenta do que estamos habituados e se dá em pequenos goles, em pequenos prazeres que podem ser degustados sem culpa, sem sobressaltos.

Na vida longe da crise, nos lembramos só de vez em quando que há um presidente, que seu entorno é povoado de ministros pouco republicanos, que há uma doença mortal que se espalha através de abraços.

Na vida longe da crise, temos mais tempo para o prazer, sorrimos mais e podemos imaginar um Brasil em que a política não seja um imperativo de sobrevivência, mas um projeto de futuro compartilhado com responsabilidade, alegria e desejo de edificar um novo mundo. n

 

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