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O absoluto dever de cuidar
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Juliana Diniz é doutora em Direito pela USP e professora da Universidade Federal do Ceará. É editora do site bemdito.jor

O absoluto dever de cuidar

Tipo Opinião

Por que um médico tem o dever não só legal como também moral de fazer tudo que estiver ao seu alcance para salvar uma vida ou diminuir o sofrimento de um doente? Trata-se de uma reflexão que vale nosso olhar atento porque, dentre todas as nossas misérias, vivemos um tempo de pandemia persistente e escândalos macabros envolvendo hospitais, médicos e planos de saúde cooptados em defesa de uma ideologia política.

É conhecida a afirmação do filósofo Immanuel Kant sobre o valor absoluto que cada ser humano guarda em sua existência. Resgato-a porque ela pode, talvez mais que qualquer outra referência, nos ajudar a desenvolver o tema.

Em Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant estabelece um imperativo moral facilmente compreensível, que deve guiar nossa relação com o outro, no momento de julgar o que devemos ou não fazer: "age de tal maneira que tomes a humanidade, tanto em sua pessoa, quanto na pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo tempo como fim, nunca meramente como meio".

É um imperativo de fácil entendimento porque, de acordo com essa ideia, podemos concluir que é antiética toda conduta que, ao desconsiderar o valor da humanidade, instrumentalize as pessoas para alcançar algum objetivo que não seja o seu bem. Que objetivos são esses? No Brasil, a resposta é muitas vezes simples: um certo ganho econômico, o triunfo de uma tese política, a comprovação de que o tratamento precoce para Covid-19 é eficaz.

Afinal de contas, o que fizeram diretores e responsáveis da Prevent Senior além de usar pessoas doentes, frágeis e vulneráveis como meios para chegar a determinado objetivo? O objetivo de demonstrar que o kit-Covid se mostrava apto a tratar uma doença, retardando internações e potencializando o ganho da rede de saúde suplementar, dando, ainda, combustível para o discurso negacionista do presidente e seus apoiadores?

No fim, é a política que ainda motiva alguns médicos e profissionais da saúde que, à revelia de todas as comprovações científicas e evidências clínicas, independentemente do bem que possa ser feito às pessoas, das chances de salvar suas vidas ou atenuar seu sofrimento, insistem numa tese que tem o único propósito de sustentar um governo podre desde a origem.

E, para que não deixemos de assumir o compromisso com a verdade e com a ética, é preciso repetir: o kit-Covid não funciona, as pessoas foram feitas de cobaia por agentes do poder público e da iniciativa privada, as vacinas foram retardadas por tentativas de corrupção.

Como argumento de defesa, médicos e políticos defensores do tal tratamento precoce se amparam num argumento bastante falho, facilmente refutável: a autonomia médica. Em outro texto, já escrevi sobre os princípios da bioética que se impõem como limitadores da autonomia do médico prescrever.

Não resta dúvida: o médico não pode, com fundamento em uma suposta liberdade de decidir o melhor cuidado, agir de forma a causar mal, aprofundar a dor e abreviar a morte. E por que é assim? Kant nos ajuda a lembrar: age de tal modo que o ser humano não seja apenas um meio, mas o absoluto fim de toda ação, de modo que sua vida nunca possa ser sacrificada em nome de um falso ídolo. n

 

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