Logo O POVO+
A grande rainha de um triste reino
Foto de Juliana Diniz
clique para exibir bio do colunista

Juliana Diniz é doutora em Direito pela USP e professora da Universidade Federal do Ceará. É editora do site bemdito.jor

A grande rainha de um triste reino

Tipo Opinião

Foi com um sentimento sincero de tristeza que soube da morte da rainha Elizabeth II. A forma como o mundo reverberou o luto mostra que sua partida é vivenciada por muitas pessoas não só como o falecimento de uma chefe de Estado importante, mas como perda concreta de uma figura de autoridade moral que, por décadas, inspirou a vida de gerações muito além das fronteiras da Grã-Bretanha.

Considerando que reis e rainhas europeias vivem e morrem sem maiores comoções, podemos nos perguntar, num esforço genuíno de reflexão sobre a nossa sensibilidade: que mística extraordinária nos conectava com a figura de Elizabeth II, a ponto de gostarmos tanto dela, mesmo sabendo das terríveis contradições de seu reino? Afinal, não é a coroa britânica o exemplo mais poderoso e perfeito de império colonial, que por séculos espoliou, explorou e desorganizou territórios e povos, reduzindo-os à pobreza e à desumanização?

Em uma das obras mais magistrais sobre o colonialismo, Aimé Césaire foi preciso ao dizer que seria preciso "estudar como a colonização funciona para descivilizar o colonizador; para brutalizá-lo no sentido apropriado da palavra, degradá-lo, despertá-lo para instintos soterrados, cobiça, violência, ódio racial, relativismo moral". A colonização estabelece as bases de uma relação de dominação que nega o direito à autonomia de um em benefício do enriquecimento de outro: ela não só "destrói o colonizado, como apodrece o colonizador", no dizer preciso de Albert Memmi.

Não há dignidade em colonizar, e foi à custa de sangue que países como Sudão, Gana e Nigéria foram emancipados do jugo imperial. Toda libertação de uma coroa há de ser comemorada: foi esse o sentido político do último dia 7 de setembro, no Brasil, quando lembramos o bicentenário da nossa Independência. Festejamos o bicentenário porque nos tornamos juridicamente livres de nossa metrópole, porque pudemos criar, finalmente, um sonho de Brasil como país não só grande, como grandioso.

Por tudo isso, o fato de gostarmos da rainha Elizabeth II, mesmo não sendo monarquistas, diz mais sobre as qualidades pessoais da monarca do que sobre o vigor da sua instituição. Para além do poder simbólico, quase místico, que as monarquias inspiram há tantos séculos, havia algo de reconfortante em sua figura que nos transmitia respeito e calma. Avessa a histrionismo, constante em seu senso de dever e conduta oficial, a rainha não se eximiu de se fazer presente, tomando posição nos momentos determinantes da história do século XX pela palavra.

Em um reino sem governo, foi a palavra a raiz da força dessa mulher que, em seus pronunciamentos moderados, nos convidava à reflexão sobre as virtudes morais, como resiliência, dedicação ao serviço e abnegação. O nosso apego afetivo por sua palavra mostra que faz muita falta, e cada vez mais, a presença de líderes cuja sabedoria possa nos acalmar em momentos de desespero, apaziguando o espírito em momentos de desorientação. Afinal, o luto anacrônico por uma rainha prova que é a carência constante de palavra e de conforto a marca de nossa condição de súditos da fragilidade e da incerteza quanto ao futuro. Que descanse em paz.

 

Foto do Juliana Diniz

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?