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Elis Regina e o dilema da tecnologia
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Juliana Diniz é doutora em Direito pela USP e professora da Universidade Federal do Ceará. É editora do site bemdito.jor

Elis Regina e o dilema da tecnologia

A imagem sorridente de Elis, por mais fiel que pareça, ainda carrega uma dose de artificialidade que nos permite pensar: "essa pessoa não está mais aqui, sua imagem foi criada pelos artifícios de uma máquina"
Tipo Opinião

O leitor que acompanha esta coluna sabe que eu tenho muitas reservas quanto ao uso indiscriminado da inteligência artificial. Não é por apego ao passado ou dificuldade de lidar com a mudança: é bastante óbvio que, para muitas tarefas repetitivas, a inteligência artificial pode se revelar benéfica, nos liberando para usar nosso tempo de forma mais prazerosa e criativa. Meu dilema com essa tecnologia é ético, e se revelou de forma muito clara quando vi pela primeira vez o comercial da Wolkswagen com a imagem da cantora Elis Regina.

Assim como a muitos, a peça publicitária, a princípio, me comoveu. Todos os elementos colaboravam para essa reação: a narrativa do comercial, evocando a nostalgia e a passagem do tempo, o saudosismo em relação às lembranças felizes do passado, as imagens temperadas com uma música que, especialmente para os cearenses, está ligada a muitas memórias afetivas e ao nosso senso de pertencimento. Mas algo contribuiu para tornar a minha experiência de ver o vídeo incômoda.

A imagem sorridente de Elis, por mais fiel que pareça, ainda carrega uma dose de artificialidade que nos permite pensar: "essa pessoa não está mais aqui, sua imagem foi criada pelos artifícios de uma máquina". E isso me suscitou dúvidas: é correto permitir o uso de imagem de pessoas mortas para produtos audiovisuais? Não haveria, assim como a vida, um direito de "morrer", de ter nossa imagem limitada aos vestígios de deixamos em vida? Quais os limites existentes ao que pode ser criado artificialmente pelo computador?

Esses questionamentos não são novos e, de certa forma, estão presentes na história da ciência e da tecnologia. Lembro bem das minhas primeiras aulas no curso de Direito, o contato com o pensamento de autores como Apel, um filósofo moral, apavorado com os limites éticos do uso da técnica: será que o fato de podermos fazer algo significa que devemos fazê-lo? Eis o dilema do cientista diante de criações tão incríveis quanto mortíferas, como a bomba atômica, por exemplo.

A analogia, que parece extrema, cabe aqui, porque a ampliação das possibilidades do uso da inteligência artificial tem o potencial de mudar profundamente nossa cultura, nosso modo de vida, nossa relação com o outro, com a nossa imagem e autopercepção, como se estivéssemos diante de uma refundação da própria ideia do que é verdade, do que é real. "Eu não gosto de pertencer ao sonho de outra pessoa", diz Alice no romance Alice através do espelho, de Lewis Carroll, uma citação que me remete a esse risco de que nos percamos de nós mesmos ao permitir que a máquina faça o que quiser de nossa imagem, história, traços de identidade.

Eu sei que nada é mais anacrônico em tempos de inteligência artificial do que um convite à reflexão filosófica. Ela exige prudência, paciência, uma boa noção de limites. "Não se ganha uma corrida contra o tempo", lemos, também, no livro de Carroll: a era da técnica está aí, e não há caminho de volta. Gosto, contudo, de pensar que ainda é possível ajustar os rumos do futuro, antes de que seja tarde demais, antes que as fronteiras entre o que é genuíno e o que é apenas uma armadilha barata já não sejam perceptíveis.

 

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