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A epidemia do ódio às mulheres
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Juliana Diniz é doutora em Direito pela USP e professora da Universidade Federal do Ceará. É editora do site bemdito.jor

A epidemia do ódio às mulheres

Há, como podemos ver, um recorte social muito específico para o feminicídio: é um crime ligado ao machismo estrutural arraigado na cultura brasileira, uma ameaça que paira sobre as mulheres e está recolhida no espaço familiar e doméstico
Tipo Opinião

Um documento extremamente importante para o mapeamento da violência do Brasil foi publicado na última quinta-feira, o 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A síntese de dados estatísticos e sua interpretação pelos especialistas nos permitem entender a evolução da prática de crimes no país e suas características socioeconômicas principais, informações indispensáveis para a formulação de políticas públicas inteligentes e eficazes.

O anuário mostra que os dados da violência contra as mulheres aumentaram de forma consistente. Embora os números indiquem, de um modo geral, uma tendência de queda das mortes violentas no país, o índice de feminicídios aumentou 6,1% em 2022 relativamente às informações do ano anterior. Ressalto algumas informações importantes para os leitores: 71,9% das mulheres mortas por feminicídio têm entre 18 e 44 anos, 61,1% são negras e 70% foram mortas em casa.

Há, como podemos ver, um recorte social muito específico para o feminicídio: é um crime ligado ao machismo estrutural arraigado na cultura brasileira, uma ameaça que paira sobre as mulheres e está recolhida no espaço familiar e doméstico. Em matéria sobre o tema, o jornal O Globo ressaltou, a partir dos dados do documento, que 53,6% das mulheres vitimadas foram mortas pelo parceiro íntimo, 19% pelo ex-companheiro e outros 10,7% por algum familiar, o que nos leva a um debate necessário sobre como nossas dinâmicas familiares podem violentas para as mulheres.

O feminicídio não é um homicídio qualquer, ele tem características muito próprias. Costumo dizer que é um crime marcado por um simbolismo ligado à não-aceitação da liberdade feminina. É um assassinato que se relaciona com um contexto de violência doméstica ou de ódio contra a condição de mulher. As motivações masculinas para praticar o crime são muitas e muitas vezes banais, seja um "não" dito a um homem incapaz de entender que a mulher tem o direito de escolher, seja a simples desobediência. No crime, aquele que mata afirma o poder primordial sobre o corpo feminino: o poder de morte e de vida.

O aumento no índice de feminicídios parece se dever à convergência de dois fatores. O primeiro é a mudança no critério de classificação dos crimes pela polícia, que tem diminuído o problema histórico da subnotificação. O segundo é cultural: nos últimos quatro anos, vivemos imersos em um ambiente político em que o ódio à mulher foi não só cotidiano, como banalizado.

Os dados inspiram mais atenção ao machismo e à desigualdade. Entender que nosso mundo é estruturado pelas relações de gênero é importante para que possamos reagir a problemas tão graves como a violência. Reconhecer que as mulheres estão mais vulneráveis e são mais facilmente vítimas do que os homens não significa hierarquizar a vida, simplesmente indica a nossa capacidade de perceber que a desigualdade importa para nosso exercício de direitos.

Uma mudança profunda de mentalidade em relação à liberdade feminina precisa ser trabalhada com urgência no sistema de justiça. Só uma nova visão sobre a mulher e seus direitos nos permitirá viver em um mundo em que dizer "não" signifique apenas uma escolha, não um risco.

 

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