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O STJ contra a lei e as mulheres
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Juliana Diniz é doutora em Direito pela USP e professora da Universidade Federal do Ceará. É editora do site bemdito.jor

O STJ contra a lei e as mulheres

Só uma sociedade machista considera que uma menina de doze anos já está preparada para consentir com uma união estável, com todas as consequências que ela implica, como uma gravidez, por exemplo
Tipo Opinião

Uma decisão do Superior Tribunal de Justiça afastou o crime de estupro ao avaliar a conduta de um homem de 20 anos que engravidou uma menina de apenas 12. O resultado suscitou um debate complexo muito além do meio jurídico sobre o modo como um Poder Judiciário majoritariamente masculino aplica a lei em desfavor da proteção às mulheres.

De acordo com o Código Penal, a relação sexual com alguém menor de 14 anos é presumidamente violenta, por isso, pode-se consumar um estupro mesmo que tenha havido o "consentimento" da vítima. No caso, o tribunal mudou a qualificação da conduta como crime por considerar que a união estável assumida pela criança com o indivíduo tornaria a punição estatal mais danosa do que a sua absolvição. As questões que devemos fazer aos juízes são duas: o consentimento dado por uma criança para uma relação sexual é válido, à luz do Direito? Que autoridade têm os juízes para decidir contra a lei?

São duas indagações que nos levam a um debate importante e difícil sobre o modo como o machismo estrutural penaliza as mulheres em espaços de poder institucional como o Judiciário. Só uma sociedade machista considera que uma menina de doze anos já está preparada para consentir com uma união estável, com todas as consequências que ela implica, como uma gravidez, por exemplo. Não é preciso muito esforço para que entendamos os limites do desenvolvimento sexual e cognitivo de alguém com tão pouca idade.

É também expressão de machismo quando juízes relativizam a vulnerabilidade das crianças e banalizam a sexualização precoce a que muitas são submetidas por sua condição socioeconômica. É certo que muitas meninas periféricas têm sua iniciação sexual muito cedo, mas isso se deve menos ao seu desenvolvimento acelerado e mais às deformações de uma cultura muito hostil às mulheres.

Consentir é manifestar uma concordância inequívoca, expressa e reiterada, em estado de consciência e capacidade de julgamento. Uma criança não pode consentir com o sexo. Por isso também há estupro quando mulher inicialmente deseja, mas desiste ao longo da relação e tem sua desistência ignorada pelo parceiro. O fato de que o STJ reconheça a capacidade de uma menina de 12 anos para o consentimento e afaste a incidência de uma lei válida é motivo de preocupação.

Isso porque a decisão contra legem, a que se toma em manifesta oposição à lei, é ilegítima, inválida, porque constitui um exercício abusivo da autoridade constituída. A lei existe para que tenhamos um mínimo de previsibilidade e de respeito à soberania popular: no caso, não há dúvida interpretativa, não há espaço de sombra, a decisão simplesmente ignora o dispositivo legal. É sugestivo, também, que haja um histórico triste de casos de violação à literalidade da lei quando meninas têm o seu direito ao aborto legal negado nos casos de violência. Também nesse caso, não cabe ao juiz avaliar conveniências, cabe aplicar o que é de direito.

Precisamos, sim, de um Judiciário mais diverso, mais empático, menos encastelado em uma visão de mundo arcaica, caduca, que só colabora para afastá-lo daqueles que mais precisam da sua proteção correta, como as crianças e as mulheres. n

 

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