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O Estado que mata e esculacha
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Juliana Diniz é doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC). É editora do site bemdito.jor

Juliana Diniz política

O Estado que mata e esculacha

Decapitar alguém é ação que exige tempo, esforço físico e colaboração - especialmente num contexto extremo de operação policial. Se as pessoas foram mortas em circunstância onde era possível evitar o resultado morte, o Estado praticou um crime e deve ser responsabilizado
MULHERES choram junto do corpo de homem morto, na praça São Lucas, na favela Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha, no Rio de Janeiro (Foto: PABLO PORCIUNCULA / AFP)
Foto: PABLO PORCIUNCULA / AFP MULHERES choram junto do corpo de homem morto, na praça São Lucas, na favela Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha, no Rio de Janeiro

Não há outra emoção para descrever o que senti diante dos efeitos da operação policial no Rio de Janeiro além do extremo choque. A violência exposta dos corpos enfileirados em praça pública, a dor das mulheres no reconhecimento coletivo, em condições indignas, dos cadáveres de seus familiares. Também o choque diante de muitas manifestações banalizando a morte de uma centena de pessoas como um efeito colateral possível de uma operação policial. Quem aplaude uma matança?

Há muito para refletir. O Estado não tem autorização para matar. No Brasil, a pena máxima é a de encarceramento após um processo judicial em que deve ser assegurada a ampla defesa. O pior, mais perverso e irrecuperável infrator tem esse direito por uma razão fácil de ser compreendida: o Estado não pode se converter em assassino, praticando a mesma vilania de quem ele precisa apenar.

É sinal de ingenuidade ou muita ignorância pressupor, sem investigação, que as dezenas de pessoas alvejadas, esfaqueadas e decapitadas tenham sido mortas por resistir. Decapitar alguém é ação que exige tempo, esforço físico e colaboração - especialmente num contexto extremo de operação policial. Se as pessoas foram mortas em circunstância onde era possível evitar o resultado morte, o Estado praticou um crime e deve ser responsabilizado por isso.

O segundo ponto que gostaria de trazer aqui é ético e humanitário. Por que nos tornamos uma sociedade que hierarquiza o valor das pessoas? Que as diferencia entre os facilmente matáveis e aqueles que são dignos de luto? A dor da mãe do policial morto é a mesma dor da mãe do traficante com as vísceras expostas na praça: choram por um ser humano que se foi violentamente, precocemente. Toda morte violenta deve ser lamentada, seja de quem for, porque ela revela nossa falência enquanto sociedade, enquanto grupo.

A frieza e o sadismo dos que comemoraram o resultado mortífero dessa operação só revela o quanto estamos distantes dos ensinamentos do cristianismo. Muitos dos que aplaudem carregam no peito uma cruz ou vão ao culto aos domingos para pedir a benção divina. E, no entanto, são incapazes de compreender esse princípio moral básico que deveria nortear a ação de todo cristão: cada ser humano guarda uma dignidade, tem direito à vida, tem direito ao mínimo para existir.

Operações policiais violentas são sabidamente ineficazes para neutralizar o crime organizado. Uma rede complexa se combate com inteligência e asfixia financeira, não com balas. A mão de obra barata do tráfico abatida brutalmente pela polícia pode, numa lógica perversa, ser substituída com rapidez. Já o crime organizado permanece e se infiltra nos escritórios bem climatizados do mercado de valores e da república.

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