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Trânsitos e limites: entre o legível e o visível
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Doutora em Sociologia com pesquisa em economia criativa, sociologia da arte e da cultura. É membro do corpo docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS), da Universidade Estadual do Ceará (UECE)

Kadma Marques arte e cultura

Trânsitos e limites: entre o legível e o visível

Tipo Opinião
Grande painel com obras do artista Célio F. Sousa (Foto: Thais Mesquita)
Foto: Thais Mesquita Grande painel com obras do artista Célio F. Sousa

No universo configurado pelas experimentações da chamada “arte contemporânea”, não surpreende mais os processos de criação plástica que utilizam objetos do cotidiano ou materiais orgânicos. Também não espanta que rupturas no uso de materiais e suportes tidos agora como convencionais se estendam ao abandono de lugares tradicionalmente associados a exposições de arte, a exemplo de museus e galerias, levando as obras a ocupar o espaço urbano. As instalações artísticas dão testemunho desse diálogo com a cidade, transformando a percepção que os habitantes têm de certos lugares. Essa dinâmica tem aberto possibilidades para experiências visuais originais e instigantes, as quais desafiam repertórios visuais e limites conceituais.

Este é o caso da instalação que recentemente tomou a entrada de uma conhecida loja de decoração de ambientes em Fortaleza – a Spazio. A proposta assinada pela estudante de arquitetura Marília Cidrão Parente criou uma simbiose visual entre as paredes totalmente cobertas por uma composição de páginas de jornal e as obras do artista popular Célio F. Sousa. Se a presença dessas peças na Spazio confirma a tendência entre arquitetos e designers brasileiros de evidenciar a riqueza da arte popular e do artesanato, essa ligação entre os universos da arte popular, do design de interiores e da palavra impressa não é um procedimento tão comum, o que o torna instigante.

Recortes do VENTITY_amp_ENTITYA fazem parte da intervenção na Spazio
Recortes do VENTITY_amp_ENTITYA fazem parte da intervenção na Spazio (Foto: Thais Mesquita)

De fato, no longo período que vai do século XV ao XX, a cultura ocidental estruturou-se com base na relação de tensão que separava hierarquicamente a dinâmica de sentidos produzidos a partir de textos e de imagens. Foi somente no início do século XX que uma aproximação entre pintura e as formas da tipografia possibilitou que o texto impresso se integrasse à estrutura da composição de obras plásticas.
Assim, as colagens cubistas revelaram a dupla dimensão que marca a vida dos textos – eles não somente fixam o verbo pronunciado, mas também podem ser visualizados, portanto, são imagens. A partir daquele momento, em que a página impressa foi integrada ou passou a servir de suporte ao desafio cubista de incitar à experiência de simultaneidade por sobreposição de imagens, o texto teve seu sentido reconfigurado, funcionando também como dimensão imagética.

No caso dessa instalação, a qual deixa o espaço urbano para transformar a lógica da Spazio (de finalidade comercial para aquela da apreciação desinteressada), as páginas impressas de jornal coladas em composição também oscilam entre duas funções (textual e imagética). Ademais, no jogo visual criado para “dialogar” com os trabalhos de feitio artesanal, Marília Parente escolheu dentre os Cadernos de O POVO aquele que mais experimenta em termos de edição gráfica, que investe particularmente em imagens e cores, o Vida & Arte. Esse título, repetido em vários pontos da composição, provoca um efeito justaposto de significado verbal e de impacto visual, graças à transmutação do texto em imagem integrada à dinâmica da composição plástica.

As pessoas que adentram a loja experimentam uma oscilação entre os papéis do cliente e do público. Elas transitam entre repertórios da cultura letrada (ou do legível) e da cultura visual (ou do visível). Seu olhar passeia entre os limites das palavras impressas que funcionam simultaneamente como imagem e como texto (o título Vida & Arte); mas também aquele limite configurado pela página do Jornal que abandonou sua condição legível para aderir apenas àquela do visível; e ainda a fronteira visual atravessada pelas obras plásticas cujo colorido as faz oscilar entre visível e invisível, a partir das relações colorísticas com a colagem do Jornal.

Por fim, todas estas dinâmicas ocorrem no interior de um espaço duplo, moldável, ele mesmo cambiante: a Spazio abriga a Sculpt Galeria, definindo-se por isso como um lugar de trânsito harmonioso entre a estética sofisticada de objetos do design e a singularidade que marca os objetos artísticos presentes na Galeria.

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