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André Luiz, o traço na leveza do gesto
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Doutora em Sociologia com pesquisa em economia criativa, sociologia da arte e da cultura. É membro do corpo docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS), da Universidade Estadual do Ceará (UECE)

Kadma Marques arte e cultura

André Luiz, o traço na leveza do gesto

Tipo Análise
Ti: solidão no passeio público 
Ta: ofício 
Tc: bico de pena 
- nankin (Foto: André Luiz)
Foto: André Luiz Ti: solidão no passeio público Ta: ofício Tc: bico de pena - nankin

Inaugural e morna, a linha riscada cedo desperta no universo infantil. Frágil, ela se desfaz em breve sulco na areia, à beira-mar. Imaginária, ela se converte em fio condutor que empresta coerência a cada trajetória pessoal. Metafórica, ela esboça perfis e delineia raciocínios. Complexa, ela define o traçado urbano, mas não as vidas em movimento que ele abriga. Monótona, ela prolonga o olhar sobre a interminável estrada. Fria e audível, a linha alarma de forma reta que mais uma vida se esvai.

Tão presente quanto invisível, a linha serviu-se do olhar sensível e da mão decidida do artista para tornar-se alvo de apreciação. Na condição de desenho, ela deixou de ocupar o ponto cego encoberto por inúmeras camadas de urgências do cotidiano.

No Ceará, os 48 anos de trajetória artística de André Luiz revelam uma obstinada disposição para reconhecer nesse um fazer soberano. Porém, a Fortaleza da década de 1970 mal percebeu a emergência de um silencioso marco: o nascimento de seu primeiro bico de pena, inaugurando o percurso de aquisição de movimentos precisos, articulados pelo pulso do artista.

Naquele universo em preto e branco, solitários foram os gestos traçados sobre o papel ao longo da primeira década. Talvez por isso na série criada a partir da frequência ao Passeio Público, o vazio tenha tragado o cenário, reduzindo-o a um simbólico banco de praça. Dele, a figura masculina aproximava-se ou afastava-se, submersa em pensamentos provocados por um lugar de prazeres e encontros fugazes entre pessoas-ilha.

Muito trabalho mental antecedia a conversão de linhas em desenho. Porém, uma vez iniciado o emprego da hábil técnica cultivada, a mão de André Luiz sobrevoava em gesto veloz as folhas de Canson. Pousado sobre o papel, o bico de pena não o abandonava, até que o trabalho estivesse praticamente concluído. Assim o exigia a maestria no desenho. Esse único traço, quase interminável, levava a pena da caneta à exaustão, fazendo-a sangrar um fino rastro contínuo de nanquim que definia o desenho. Ao final, exausta também estancava a mão do artista, avessa à euforia temporária provocada pela sensação de algo bem feito.

Na materialidade dessas obras, duas histórias nascidas no Oriente se encontram – a do papel e aquela do uso do nanquim. No traslado para o Ocidente, o papel converteu-se em material privilegiado na difusão da cultura escrita, acolhendo no campo da arte uma atividade-meio: o esboço. Por sua vez, a elegância milenar do manuseio do bico de pena contribuiu para a elevação do desenho artístico: de mero esboço à dimensão de obra plástica.

Assim, nas paisagens de André Luiz a porosidade do Canson parece ter absorvido mais do que o nanquim. Em “Felicidade sobre Papel”, a convergência tácita entre o preto deixado pelo bico de pena e o branco do suporte evoca o fluxo de sentidos do silêncio e do vazio na cultura oriental. Desse universo emerge uma estética da calma, fundada em uma economia visual do mínimo e da harmonia de contrastes que marca também a obra de André Luís.

Hoje, o peso do ofício incorporado dá testemunho do decurso dos anos investidos na elaboração da leveza em incontáveis desenhos, cuja contribuição original ampliou o escopo das artes no Ceará. Vários foram os prêmios colecionados em salões e exposições. Mesmo assim, seus trabalhos mais recentes expõem um artista inquieto cuja maturidade avança ao ritmo dado pela qualidade da invenção temática, formal e técnica.

Nas casinhas feitas pelo artista, contornos indefinidos afirmam a temática do movimento como parte de uma poética própria. Nela, arte e ciência se irmanam. Por isso, em “Falso Barrica” e “Nascimento do Conceito Mecânico”, a linha não delimita, antes vibra, movendo-se entre múltiplos universos, cujas fronteiras assumem formas nebulosas. Por fim, André Luiz impõe de modo original uma zona fluida entre desenho e pintura. Nela, a caneta a nanquim recua, concedendo precedência à atividade do pincel assanhado na configuração de desenhos- pintura.

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