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Aldemir Martins:no domínio do traço
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Doutora em Sociologia com pesquisa em economia criativa, sociologia da arte e da cultura. É membro do corpo docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS), da Universidade Estadual do Ceará (UECE)

Kadma Marques arte e cultura

Aldemir Martins:no domínio do traço

Tipo Análise
Foto: DUDU GOMES/DIVULGAÇÃO "Gato" Acrílica sobre tela 35 x 85 cm 1980

Pousada no cerne de uma estreita tela, a rosa ereta estende-se verticalmente preenchendo aquele lugar que parece ter sido concebido especialmente para ela. Ela é um convite ao olhar que não se furta a percorrer o verde de sua delicada haste longilínea, marcada por poucas folhas, culminando confortavelmente na maciez de uma corola quase aberta. Apenas sugerida, sua cor rósea provoca a lembrança do perfume preservado ao abrigo da base das pétalas, à espera daquele que instintivamente o libertará ao aspirá-lo. O modo de fazer essa rosa, criada pelas mãos de Aldemir Martins ao final da década de 1960, revelou um artista em pleno domínio do desenho como meio de expressão. A banalidade do tema colocava ainda em evidência uma habilidade artística que teve seus instrumentos de realização no manuseio preciso de uma economia de traços em nanquim e da transparência da cor em aquarela.

Em seu movimento inexorável, o tempo avançava enquanto se ampliava o domínio temático, técnico e vivencial de Aldemir Martins. Nos anos 1970, a rendeira e o cangaceiro tornaram-se presenças constantes e associadas à obra do artista. Os ecos dos engajamentos modernistas fizeram-se sentir nas décadas que se seguiram à Semana de Arte Moderna de 1922. A busca de marcas da nacionalidade que aportava tardiamente no Ceará, envolveu o artista na elaboração de imagens que inserissem o regional e o local na dinâmica de afirmação de uma brasilidade de contornos particulares. Para tanto, ele contava com um precedente vital: o conjunto de perfis humanos moldados pela cultura local, já celebrado pelo traço de Raimundo Cela, em bico-de-pena, desenho ou gravura.

A década de 1980 levou outras figuras a atravessarem a fronteira que ligava a imaginação do artista à realidade da tela. Assim, o gato azul, opulento e calmo, permanece deitado na horizontal, imperturbável à presença de não importa qual olhar curioso. Magnânimo, ele concede o tempo que for necessário à sua apreciação. Variados azuis equilibram a simetria de sua geometria própria, na qual garras, bigodes e o firme verde do olhar integram placidamente a figura. A dimensão cotidiana da vida, representada pelo felino de Aldemir Martins, diferentemente da rosa, afirma mais fortemente a autonomia do artista, pois este não negocia mais com cores locais. Neste caso, as possibilidades abertas pelo emprego da secagem rápida da tinta acrílica dá testemunho da maturidade do artista que, por meio das cores não credíveis da imagem parece sentenciar: isto é uma pintura, e não um gato.

Dispostas de maneira relacional, estas três figuras concebidas por Aldemir Martins instauram não apenas indícios para uma breve cronologia, mas se abrem também para revelar um universo de criação técnica e temática que, vez ou outra, incorpora novos elementos. Porém, o ingresso refratário no mundo do artista implica que cada objeto seja incorporado e restituído às telas segundo um estilo formal laboriosamente construído e singular. Este não pode ser equiparado à fixidez de uma suposta essência a qual limitaria variações temáticas. Ele constituiria antes um ponto de vista particular, à semelhança de um dialeto, capaz de englobar qualquer objeto na ordem estética que caracteriza a visão do artista.

Filho de Ingazeiras, pequena cidade localizada no interior do Ceará, Aldemir Martins nasceu em 1922. Sob o signo da Semana de Arte Moderna, ele mobilizou em suas criações um acervo imaginário enraizado também em lembranças. É ainda útil lembrar que ele teve o percurso acompanhado pelo de outro artista cearense monumental: Antonio Bandeira. Ao contrário da marca fortemente universal atribuída à obra deste último, não faltaram historiadores e críticos de arte que apontassem na obra de Aldemir Martins uma coerência estilística excepcionalmente elevada, em torno de linhas e cores que remetem à regionalidade nordestina.

A trajetória de reconhecimento desse artista, marcada pelas interações com a Sociedade Cearense de Artistas Plásticos (SCAP), por prêmios em Bienais no Brasil e no exterior, além de incontáveis exposições individuais e coletivas, pode ser compreendida a partir de um talento múltiplo para congregar artistas a exemplo de Mário Barata, Barbosa Leite, Barrica, João Siqueira, Estrigas dentre outros; pintores, mas também poetas, escritores, políticos e empresários além de uma capacidade rara de desdobrar o potencial decorativo e mercadológico de sua obra sem descaracterizá-la.

Por fim, o fato de haver integrado importantes circuitos de difusão artístico-culturais, no Rio de Janeiro e em São Paulo, a partir da década de 1940, potencializou a formulação de um discurso que ligava a interpretação de sua obra àquela de críticos de arte, acadêmicos e jornalistas, que a inseriram em um campo simbólico estratégico de construção de formas representativas da nação.

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Foto do Kadma Marques

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