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Aldemir Martins: mestre do olhar
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Doutora em Sociologia com pesquisa em economia criativa, sociologia da arte e da cultura. É membro do corpo docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS), da Universidade Estadual do Ceará (UECE)

Kadma Marques arte e cultura

Aldemir Martins: mestre do olhar

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Acrílica sobre tela. 22 x 16 cm. 1974 (Foto: Aldemir Martins)
Foto: Aldemir Martins Acrílica sobre tela. 22 x 16 cm. 1974

Olho sempre e outra vez o Cangaceiro de Aldemir Martins, desenhado em um passado-próximo na década de 1970. Dele nasce o frescor de um prazer infatigável, que se amolda, transforma, renova. Soberana, a figura reina sozinha. A ausência do plano de fundo expõe a certeza de seu caráter dispensável. Obra aberta, ela se revela ao mesmo tempo em que resguarda sempre algo que me escapa. Em face do Cangaceiro de Aldemir, o verbo poderia transbordar sôfrego, na tentativa de extrair dessa experiência sua totalidade. Mas seriam inúteis palavras, pequenas, fragmentárias, em face de um monumento. A grandeza da imagem toma posição, “quer dizer” sem jamais esgotar seus sentidos. Sem que seja militante, ela é insubmissa, insurgindo-se na forma e no conteúdo contra as injustiças que cindem o mundo-Nordeste.
No universo criado pelo artista, a expressão “ler um quadro” dá antes testemunho das ambições de um verbo do que da domesticação dos sentidos da imagem a que se refere. Assumido mestre do olhar, Aldemir Martins tornou-se o artista que mostrava, aguçando o prazer visual, enquanto compartilhava como bônus seu discurso sobre as obras. Pobre crítica, contando apenas com palavras e ecos de imagens para provocar o leitor. Por isso, somente descrevo, friccionando deliberadamente o mundo em preto e branco do Cangaceiro contra os efeitos de imagem que se acham no conluio de palavras e expressões. Modestamente, sirvo neste caso à prática criadora do artista que provoca a percepção e amplia os limites da emoção, a qual cresce com o movimento do olhar pousado sobre as obras.
Não faltou diversidade ao conjunto de obras que compuseram a exposição: Aldemir Martins: pinturas, desenhos e gravuras, acolhida pela Fortaleza de 1977. Dentre tantas, imagino o destaque dado àquele Cangaceiro, do filho de Ingazeiras. Forte, sua figura fita mesmo hoje o público, ao mesmo tempo em que é admirada pelo gato que o acompanha. As linhas cuidadosamente nela traçadas têm quase um efeito de hachura, criando uma geometria que preenche superfícies, conferindo-lhes densidade ou delineando efeitos de sombra e profundidade. Todos os detalhes da indumentária, o chapéu e o cinto de munição foram curiosamente estilizados, ao passo que a arma foi desenhada com apuro quase realista. Como um signo do universo social do cangaço, ela se colocou à frente do Cangaceiro.
O bico de pena me conduz ainda a um recuo imaginário, àquele momento de sua elaboração. Sem dramas, pela brancura desafiadora do papel, passeava então o olhar experiente do artista. Aos 55 anos, creio que o tempo apenas começava a lhe pesar. No ateliê, por um momento, o silêncio de um fôlego retido pode ter envolvido seu gesto em potência. Aqueles olhos habituados a testemunhar tantas criações, talvez tenham abandonado brevemente a folha vazia e se voltado para seu instrumento de trabalho. Cercado pela mão criadora, embebido em nanquim, o bico de pena não podia mais tardar, suspenso no ar. Naquele momento, as urgências da forma tinham que se fazer acompanhar pela agilidade imposta pelo meio de expressão. Obediente, a mão que o segurava atenderia então veloz a essa urgência. Quantas vezes o traço sóbrio de Aldemir Martins atravessou a monotonia do vazio, rompendo a calma insuportável da folha em branco? Daquele encontro entre o meio técnico e o desejo de forma nasceram as qualidades de um Cangaceiro particular.
Raros são os artistas que guardam em si o talento para provocar um modo de viver pelos olhos, sem ter os pés presos ao chão. Graças a um acervo imaginário acumulado ao longo de toda a vida, os nanquins e as obras em acrílico de Aldemir ganharam corpo para viver entre nós. O tempo do devaneio provocado por seus cangaceiros e o colorido de seus galos leva assim a mente a experimentar a emoção provocada por elos entre imagens, ligadas em um trânsito leve e ágil. Essa referência ao movimento aberto, múltiplo, infinito, que se renova no encontro com cada obra concebida por Aldemir Martins, encerra nesse artigo o mês de aniversário dos 99 anos que faria o artista. Ao mesmo tempo, ela abre espaço para o olhar retrospectivo de celebração tão necessário ao centenário de uma vida dedicada à criação plástica.

Foto do Kadma Marques

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