Luana Sampaio é pesquisadora e diretora de criação audiovisual do O POVO. É doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com pós-graduação em Artes Criativas na Deakin University, na Austrália. Escreve sobre memória, testemunho, imagem, cinema e história
Foto: Reprodução
Historiadora Sylvie Lindeperg e o diretor Alan Resnais
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Noite e neblina é um dos filmes mais difíceis de se assistir. Reunindo imagens de arquivo dos campos de concentração nazistas envoltos em narração e música produzidas por um sobrevivente, o filme é uma sequência estarrecedora de imagens que gritam para nos impedir de esquecer o horror ali vivido por tantas pessoas.
Décadas após o fim da Segunda Guerra Mundial, a historiadora Sylvie Lindeperg empreendeu uma pesquisa profunda sobre o filme e constatou nele algumas incongruências, como o fato de o diretor Alain Resnais sugerir, por meio da montagem, que as imagens de arquivo utilizadas são similares quando, na verdade, suas tomadas se deram em tempos e espaços distintos.
Mas é nesse momento que a autora elabora uma argumentação cirúrgica: Noite e neblina foi realizado em 1955, ou seja, apenas dez anos depois do fim da Segunda Grande Guerra, período no qual o conhecimento sobre as imagens do conflito ainda era incerto e sua raridade, desconhecida.
(Foto: Reprodução)Imagens dos campos de concentração nazistas e a memória para não ser esquecida
(Foto: Reprodução)Imagens de arquivo que reproduzem os campos de concentração nazista
(Foto: Reprodução)Campos de concentração nazista
Isso nos põe a pensar invariavelmente sobre o nosso presente. Em especial, sobre como o tempo inscreve sobre as imagens novas possibilidades de interpretação e sentido. Se Noite e neblina, realizado ainda no “quente” da Grande Guerra, não tinha condições de tatear a importância histórica daquele tema, será que nós, viajantes do tempo de 2023, já conseguimos assimilar tudo o que vivemos nos últimos anos?
Olhando para passado-presente recente, me lembro da pandemia de Covid-19, do governo autoritário ao qual - alguns de nós - sobrevivemos, da ode à tortura que presenciamos, do golpe contra a democracia que vimos televisionado. Será que, em pouco tempo passado desses episódios, nós já conseguimos dimensionar a amplitude e seriedade de cada um? O que sabemos, hoje, será ultrapassado pelo conhecimento que virá daqui há 10, 20 anos?
"Olhar imagens sobreviventes é também sobreviver. Sobreviver junto delas. Imagens foram feitas para serem olhadas, ouvidas, para que a elas fosse dedicado tempo de leitura. Mas o tempo é bem-humorado, sabemos. Então deixemos que ele mexa os pauzinhos que acha que deve"
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As imagens falam, assim como os acontecimentos históricos. Eles não são tábuas passivas de criação de sentido, eles são o próprio sentido em si, que por vezes de tão complexo, não se revela na urgência do tempo. Tempo, na verdade, é o que eles precisam pra decantar e nos permitir ver o que a fome e turbulência do presente, ainda, não nos permite.
Veja as imagens ao seu redor. Veja a mesma imagem em momentos diferentes. Veja a imagem de uma pessoa querida quando ela está na sua vida e quando ela já se foi. Veja sua imagem, jovem criança dona do mundo, e veja você, pequeno adulto tão pequeno que quanto mais vive, menos sabe.
Falar em política, em guerras, em conflitos mundiais, é também falar de nós, da nossa casa. Olhar imagens sobreviventes é também sobreviver. Sobreviver junto delas. Imagens foram feitas para serem olhadas, ouvidas, para que a elas fosse dedicado tempo de leitura. Mas o tempo é bem-humorado, sabemos. Então deixemos que ele mexa os pauzinhos que acha que deve. Nós estaremos lá, grandes e pequenas, cheias de memória e esquecimento para dizer daquilo que de tão presente que foi, nunca irá embora.
Assista ao curta-metragem Noite e Neblina
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