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O filme que dói como uma ida ao cemitério
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Luana Sampaio é pesquisadora e diretora de criação audiovisual do O POVO. É doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com pós-graduação em Artes Criativas na Deakin University, na Austrália. Escreve sobre memória, testemunho, imagem, cinema e história

Luana Sampaio arte e cultura

O filme que dói como uma ida ao cemitério

Um dia de trabalho comum se transformou em uma reflexão que levo comigo. Na curva que parece só guardar progresso e "olhares para frente", me debruço sobre um passado vivo que se quer vivo ainda que contra a vontade de muitos.
FORTALEZA, CE, BRASIL, 18.11.2020:  Jazigo de Francisco José do nascimento e sua familia, também conhecido como Chico da Matilde, vulgo Dragão do Mar no cemitério São João Batista  (Fco Fontenele/O POVO) (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE FORTALEZA, CE, BRASIL, 18.11.2020: Jazigo de Francisco José do nascimento e sua familia, também conhecido como Chico da Matilde, vulgo Dragão do Mar no cemitério São João Batista (Fco Fontenele/O POVO)

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Semana passada, eu e alguns amigos do jornal fomos ao cemitério. Lá gravamos algumas cenas do novo projeto audiovisual do O POVO+, a ser lançado ainda neste semestre. Enquanto caminhávamos em direção à saída, um de nós falou: “Nós que aqui estamos por vós esperamos”. Um outro lançou um simples “eita”, e então eu lembrei que esse título, além de ser o nome de um filme, era também o nome de um cemitério.

Demitri, que havia lembrado do filme naquele instante, lembrou também do nome do diretor: Marcelo Masagão. E ao contrário do que se espera, a conversa não enveredou por nossas opiniões sobre o filme - apesar de as termos compartilhado - e sim por algo que falei quase como um desabafo: “Me lembro que esse foi o primeiro filme que fiquei mal depois de assistir”. E estiquei: “Mas não foi o pior. Teve outro que quando terminei de ver, desmarquei uma saída que tinha com uma amiga. Ele me abalou por uns dois dias”.

O filme em questão era O fundo do ar é vermelho, de Chris Marker, que curiosamente nem é tão distante assim de Nós que aqui estamos.... Enquanto Masagão fala sobre a vida e a morte em um trabalho de montagem riquíssimo de imagens trágicas do século passado, Marker trás cenas viscerais de conflitos bélicos no Vietnã, Bolívia, Chile, Argentina e outros países, também ocorridos nos idos do século XX.

Nós que aqui estamos por vós esperamos (Marcelo Masagão, 2006)
Foto: Reprodução
Nós que aqui estamos por vós esperamos (Marcelo Masagão, 2006)

 

Você pode me perguntar (e tem quem realmente pergunte): por que ver filmes assim? Filmes tristes? Bem, posso te dar dezenas de respostas, mas o que mais quero dizer é que, primeiramente, eles são tristes porque não tinham como não ser. E mais, não se trata apenas do fato de abordarem questões dolorosas, mas de que tais questões precisam doer porque são nossa história, não um parágrafo em um livro. Quando falamos em história ou filmes históricos, é comum que pensemos neles como algo distante e imóvel que só serve para contemplação, quando na verdade são eles que jogam luz para o nosso presente, nos auxiliando a compreendê-lo e transformá-lo.

Esses filmes falam de pessoas e eventos que se deram à flor da pele. Eles e elas existiram. As lutas, conflitos, guerras, disputas que testemunhamos ali, ocorreram no mundo físico e simbólico em que vivemos. Veja, elas não estão enterradas, aconteceram há pouco mais de 30, 40, 50 anos, se você parar para pensar. Em determinada medida, seus pais viram ou ouviram alguns desses fatos acontecerem. Seus avós, mais ainda. E você, o que você vive agora, não dói? Não deveria doer?

É evidente que falo primordialmente de conflitos violentos e coletivos. E certamente não está no meu escopo trazer aqui qualquer exaltação de sofrimento, não é meu ponto. Ao invés disso, quero compartilhar contigo a mesma essência que me move - e me deixa imóvel - ao observar tais obras: o passado não passa, e ignorar isso - deixando de ver os filmes, por exemplo - não vai mudar essa realidade. O passado não passa porque ele pulsa, ignora a distância que nossas convenções tentam lhe impor e por isso ele incomoda tanto. O fato de não olharmos pra ele, não significa que ele não está, sempre, olhando para nós.

Então, da próxima vez que estiver caminhando com amigos e algum deles lembrar de uma obra que “me fez ficar mal”, no sentido de “ficar mal” que pontuei aqui, espero poder contribuir com outra obra, uma tão latente quanto transformadora, e que mova, acima de tudo, meu presente. Se o passado não cessa de me olhar, que eu consiga, também, fitá-lo até onde alcanço.

 

FILMES

Nós que aqui estamos por vós esperamos (Marcelo Masagão, 2006)
Disponível no Youtube.

O fundo do ar é vermelho - Parte 1 (Chris Marker, 1977)
Disponível no Youtube.

Foto do Luana Sampaio

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