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Elis, o sinal ainda está fechado
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Luana Sampaio é pesquisadora e diretora de criação audiovisual do O POVO. É doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com pós-graduação em Artes Criativas na Deakin University, na Austrália. Escreve sobre memória, testemunho, imagem, cinema e história

Luana Sampaio arte e cultura

Elis, o sinal ainda está fechado

Pensar sobre Elis é pensar em arte, tempo e sentimento
Tipo Opinião
Maria Rita e Elis Regina: campanha da Volkswagen (Foto: divulgação)
Foto: divulgação Maria Rita e Elis Regina: campanha da Volkswagen

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A Volkswagen ressuscitou Elis Regina por meio de Inteligência Artificial (IA). Em um comercial divulgado na semana passada, a cantora aparece dentro de uma Kombi de modelo antigo enquanto sua filha, Maria Rita, conduz outro automóvel com design parecido, mas completamente automatizado.

Ao som de “Como nossos pais”, Belchior e Elis são trazidos ao presente em uma propaganda bonita, bem feita, e questionável sob diversos pontos de vista. Quando assisti, senti estranheza. A qualidade técnica da peça é indiscutível, existe beleza na nostalgia que conversa com diversas gerações e apela pra saudade, saudosismo e, em tese, para um olhar para o futuro.

Mas ainda que havendo beleza, estranhei. Não identifiquei o que estava acontecendo ali, quem era aquela Elis ou o motivo de ela estar tão sorridente com sua filha em uma propaganda de automóvel. Dentre as problematizações que ouvimos, muitas dizem do uso da IA para simular uma volta à vida de quem já faleceu, a questão dos direitos dos mortos, ou a famigerada frase que filmes futuristas adoram: o fato de você poder fazer, não significa que deva fazer.

 

Elis Regina e Maria Rita juntas na campanha publicitária da Volkswagen; confira mais informações sobre a Inteligência Artificial (IA)(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Elis Regina e Maria Rita juntas na campanha publicitária da Volkswagen; confira mais informações sobre a Inteligência Artificial (IA)

Inteligência artificial promovendo encontros impossíveis no mundo material, o uso de uma canção de resistência política, cantada durante a ditadura civil-militar, agora associada a uma nostalgia desengajada para gerar lucro a descendentes e empresa (empresa essa que se beneficiou e muito das políticas não-protecionistas adotadas pelos militares que a própria Elis combatia), o hipotético consentimento do falecido que fica a cargo da família, a ilusão da morte como algo reversível, e a lista continua.

Muitos se emocionaram, mas outra parcela das pessoas se empenhou em esquentar o debate a respeito da IA e do (des)preparo que temos para lidar com tudo que ela pode criar. E veja, realmente não sei se a discussão é da ordem do certo ou errado, mas com certeza estamos diante de escolhas feitas sem qualquer ingenuidade.

A imagem da Elis que o comercial revive não é a da cantora em começo de carreira, com cabelos e roupas quase lúdicas. Também não é a militante, a mulher que fuma falando palavrões em entrevistas ou a que critica o poderio dos patrões. A Elis do comercial é a mãe, a cantora consagrada, de sorriso marcante e os cabelos curtos que carimbaram sua imagem. Ela canta ao lado da filha, um dueto que nunca conseguiu fazer em vida.

 

Assista ao comercial aqui

 

A propaganda precisa desse drama para ser eficiente. Disfarçar o peso da canção ou das contradições ali envolvidas é fundamental para o sucesso da peça. E nesse sentido, é impossível não notar que uma das estrofes deixadas de lado é justo aquela que diz: “Eles venceram e o sinal está fechado pra nós, que somos jovens”.

Algumas interpretações dão conta de dizer que se trata dos militares no poder e da perseguição contra os jovens (o tal do sinal fechado). Pensando em como a propaganda foi feita e no momento em que vivemos, podemos até refletir sobre a quem o comercial se destina. De um lado, é duvidosa a quantidade de jovens que teriam condições ou interesse de adquirir o automóvel anunciado na propaganda. Do outro, é duvidoso que a própria Elis estivesse pensando em um carro quando cantou a visceralidade da juventude. De um modo ou de outro, parece que o sinal continua fechado pra nós.

Voltando para a imagem da peça, até semana passada vivemos sem saber como seria Elis e Maria Rita cantando juntas. Bem, agora vimos, numa propaganda de carro. Mas será que vimos mesmo ou estamos nos contentando com o que a tecnologia pode nos proporcionar e o resto fica por nossa imaginação? São tantas as questões suscitadas pela publicidade que me vejo envolvida em questões não só políticas e artísticas, como também místicas, que giram em torno da vida ser assim, uma caminhada sem muitas respostas.

Perdemos Elis, perdemos tantos outros artistas e pessoas inspiradoras que nos deixaram recheados de perguntas de “como seria”. Não sei o que Elis diria ou faria. Não sei se IA pode trazer uma solução ou se esse é o caso de precisarmos de uma. Não sei o impacto de começarmos a simular respostas verossímeis. E, independente disso, só não podemos perder de vista que estamos lidando com pessoas que um dia tiveram suas ideias e pulsaram incessantemente, continuando a viver em pequenos pedacinhos na nossa vida. O novo só vem com passado elaborado, do contrário é ruminação.

 

Foto do Luana Sampaio

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