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Como a imagem olha para nós?
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Luana Sampaio é pesquisadora e diretora de criação audiovisual do O POVO. É doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com pós-graduação em Artes Criativas na Deakin University, na Austrália. Escreve sobre memória, testemunho, imagem, cinema e história

Luana Sampaio arte e cultura

Como a imagem olha para nós?

Uma lembrança de infância, um sonho. Um autor e outra lembrança que se transforma em imagem pois é com ela que lembramos. De tanto olhá-la, como ela olha para nós de volta?
Tipo Crônica
Foto: Ana Lucia Mariz "Um milhão de átomos em movimento", de Ana Lucia Mariz, 2011. Imagem do livro "Imagens-ocasiões", de Didi-Huberman

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Quando eu era pequena, tinha o sonho de comprar uma baladeira. Queria acertar, mirar, me desafiar e, depois de muito tentar, consegui convencer meus pais a comprar uma. Quando cheguei no bar do Aloísio e pedi a baladeira, ele pegou o brinquedo, jogou no balcão e disse “agora só falta menino brincar de boneca”. Saí, chorei durante todo o caminho de volta pra casa. Nunca consegui brincar com a baladeira.

Outro dia, alguns anos depois, enquanto brincava com minha irmã na área da frente de casa, esbarramos no fusquinha estacionado e vimos que ele se mexia. Achamos o máximo termos tanta força pra fazer o fusquinha balançar e então decidimos… balançar o fusquinha! Nos empenhamos para colocar toda nossa força e ele foi pra frente de uma vez só, batendo na parede e derrubando um pedaço dela. Quando meu pai viu, disse que “se fosse menino, eu entendia”.

Menino pode fazer um monte de coisa, né? E olha que são as coisas mais legais, me parecia na época. Na imagem que se monta na minha mente ao recordar dessas cenas, lembro de muito, e um pouco diz do fato de que só depois entendi que o problema não era o meu gosto por “coisas de meninos”, era que eu não era um deles. Afinal se fosse, poderia brincar com baladeira, quebrar paredes e até subir no telhado (como eu fazia escondido). Georges Didi-Huberman uma vez disse:

"Diante de uma imagem, enfim, temos que reconhecer humildemente isto, que ela provavelmente nos sobreviverá, somos diante dela o elemento de passagem, e ela é, diante de nós, o elemento do futuro, o elemento da duração. A imagem tem frequentemente mais memória e mais futuro que o ser que a olha." Georges Didi-Huberman

 

O autor fala de imagens e eu penso em lembranças, essas impressas em nós indicando que muito além de congelar o tempo - como nos é confortável dizer - elas são o tempo em si. Não gostam de apenas ficar, o que as imagens fazem é nos assistir passar. Quantas vezes olhamos para elas na impressão de contemplarmos o passado, quando na verdade é ele, através da imagem, quem nos fita dizendo que tanto vive quanto sobreviverá? Que de todos os olhares que recebe, nenhum será tão duradouro quanto o olhar que lança em direção a nós?

Outra vez, Didi-Huberman falou: “nós deveríamos, diante de cada imagem, nos perguntar a questão de como ela olha (para nós), como ela (nos) pensa e como ela (nos) toca ao mesmo tempo”. Viajo nesses pensamentos porque quando retorno ao bar e ao fusca penso em como aquela menina me olha, e ainda mais, como olham para nós todas as nossas versões infantis sufocadas por preconceitos e inseguranças alheias.

Assim, caso você também se pegue sendo vista passar por suas imagens do passado, se pergunte como elas olham para você. No lugar de virar para trás, se movimente e vá até ela, se demore ali, converse e junto dela, olhe pros hojes que se projetam à sua frente. Pode ser que algo novo surja e pode ser que a única coisa nova ali seja você, reencontrada e recalibrada para brincar, comprar, balançar, falar, subir, mexer, desarrumar e construir o que você quiser.

Foto do Luana Sampaio

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