Luana Sampaio é pesquisadora e diretora de criação audiovisual do O POVO. É doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com pós-graduação em Artes Criativas na Deakin University, na Austrália. Escreve sobre memória, testemunho, imagem, cinema e história
O óbvio sempre precisa ser explicitado, essa é a real pegadinha. De tão compreensível e notável que é, nos faz cair na bobeira de esperar demais de quem tem de menos pra dar
Foto: Reprodução: VEJA SP
Capa da revista Veja São Paulo de 27 de janeiro de 2021. "Especial aniversário da cidade. A capital do Nordeste. Os novos migrantes que reiventam o design, a gastronomia, as startups e outras atividades da metrópole, que completa 467 anos".
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Certa vez a revista Veja elegeu São Paulo a capital do Nordeste. Com a justificativa de que estava “homenageando” os migrantes nordestinos no aniversário de 467 anos da cidade paulista, a capa trás os rostos daqueles que representariam o “novos migrantes”, que seriam jovens empreendedores que hoje implementam negócios promissores no sudeste.
Mas, pera lá. São Paulo, capital do Nordeste? Novos migrantes? Homens e mulheres pouco diversos fotografados em um cenário terroso com cactos? Pra comemorar o aniversário da capital paulista? São tantos elementos na imagem - e na campanha por inteiro - que novamente nos questionamos como é possível ela não ter sido criada de forma propositalmente problemática. Ou, por outro lado, como pode ela ainda representar o imaginário sudestino sobre o que se passa em nove estados que eles desconhecem em profundidade.
Essa seria até uma discussão antiga, cansativa, não fosse a força e frequência com que sudestinos insistem em criar de nós uma imagem que só existe nas suas mentes. Basta lembrar que enquanto filmávamos um longa sobre história do Ceará, uma colega comentou da angústia em procurar uma locação de “chão rachado” pois esse foi o pedido explícito da produtora paulista que virá fazer fotos de produtos de moda praia em parceria com bordadeiras do Icaraí. Isso faz algum sentido?
Os contos fantásticos - e nem tão fantásticos assim - que sudestinos e sulistas criam sobre o restante do país é grotesco, grosseiro. Uma amiga pergunta para um amigo onde pode filmar uma escola feita de palha no Ceará, e ao ser informada de que não encontrará uma dessas em cada esquina, ela se recusa a acreditar. Outro amigo viaja segurando um pedaço de bolo decorado, até que escuta: “que bolo bonito, não sabia que faziam bolos assim no nordeste”. Aumentando a escala ainda fica melhor, pois uma espanhola afirmou veemente para mim: é claro que vocês fazem vodu no Brasil!
Mas voltando para o Nordeste, a imagem de uma região sofredora agrada, sempre agradou. A quentura, a seca, a escassez e, principalmente, a migração para uma terra dita promissora que, segundo a revista, acolhe os “novos migrantes que reinventam o design, a gastronomia, as startups e outras atividades da metrópole", é uma história boa demais para deixar de ser contada, pra eles. Se o Nordeste não penar, como São Paulo irá salvá-lo? Fica difícil.
Por isso e por muitos outros motivos eles querem cactos, palha, chão rachado. A história acaba sendo sempre “sobre eles” pois é sua leitura que permanece e é, ainda, pautada em colonialismo, xenofobia, racismo. Muito se fala em representatividade e seguimos colhendo oportunidades perdidas de fazer algo valioso com elas. Vamos aguardar a próxima campanha, a capa, a próxima novela das seis. Quais Nordestes irão prevalecer?
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