Luana Sampaio é pesquisadora e diretora de criação audiovisual do O POVO. É doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com pós-graduação em Artes Criativas na Deakin University, na Austrália. Escreve sobre memória, testemunho, imagem, cinema e história
Me perdia em cada esquina, ouvia desaforo por tentar e falhar em falar francês, conquistava espaço com o inglês, caminhava e usava shorts sem acreditar que estava tendo a chance de levar minhas roupas de Fortal pra passear
Foto: Reprodução/instagram/@luanasampaio.doc
Na foto, a colunista Luana Sampaio
Escrevi minha última coluna em agosto de 2024. Nela, a imagem e o sentimento do meu primeiro projeto autoral selecionado por edital, um livro que desde então escrevo e que em breve vai contar a história de como quatro cearenses deram o que tinham pra conquistar direitos seus e dos seus no ABC Paulista dos anos 1970 e 1980.
Naquele tempo eu já tinha recebido a notícia pela qual passei dois anos esperando pra receber: o aceite de uma bolsa de estudos pra realizar parte do meu doutorado na Concordia University, em Montreal no Canadá. Cheguei na cidade-pedaço-de-europa-no-norte no mês seguinte.
Me perdia em cada esquina, ouvia desaforo por tentar e falhar em falar francês, conquistava espaço com o inglês, caminhava e usava shorts sem acreditar que estava tendo a chance de levar minhas roupas de Fortal pra passear. Cheguei até a dormir com ventilador ligado. Hoje, pensando que presenciei a nevasca mais forte dos últimos 84 anos na cidade, essa lembrança parece até engraçada.
O verão foi embora e ver as estações do ano passando na minha frente fez eu me sentir folheando um livro de ciências, só que dessa vez eu estava dentro dele, vivendo um sonho, uma realidade paralela. “Eles tem noção que tem gente agora vendo o outono dos livros pela primeira vez na vida? Que pra quem vive na linha do Equador ele é quase uma lenda?”, eu me perguntava.
Vi as folhas amarelinhas querendo ansiosas se avermelhar pra receber outubro. Ou seria o contrário? Nem isso eu sabia dizer. Vi os jerimuns com rostos esculpidos enquanto caminhava pra conhecer uma padaria nova ou ir ao brechó buscar por casacos, afinal nem camisa de manga comprida eu tinha.
Aprendi que poulet era frango em francês. Queijo, fromage. Pingados aqui e ali e eu ia me situando, mas sem nunca atingir a perfeição necessária pra conseguir ser bem tratada por francófonos.
Foto: Reprodução/Instagram/luanasampaio.doc
Luana Sampaio em Montreal, no Canadá
Os celsius caiam. O janelão característico dos filmes feitos por aqui era o primeiro ato dos meus dias fílmicos. Da minha nova casa, cujos móveis me foram doados e carregados por mim e uma amiga que me ajudou com a muança, eu via o movimento da Sherbrooke St. De lá eu também via a Place des Arts, o que fazia a sensação diária de estar em outro universo ser sempre mais forte.
A neve veio. A rotina. A comida indiana. O café de 2 dólares. O Natal, que pra mim sempre foi oficialmente dia 24. Nesse dia acordei angustiada, sentindo o vazio que já vinha se anunciando pelo deserto que a cidade se tornou no recesso de fim de ano. Resolvi sair. Havia nevado a noite inteira. Quando virei a esquina de casa, não vi rua nem calçada, só pozinhos e floquinhos mágicos de quem se sentia a própria “esqueceram de mim” e chorava de alegria por estar ali, por não ter desistido.
Andei na chuva e na neve sabendo da contagem regressiva pra voltar pra casa, mas ela não me angustiava. Sentia o tempo passar, mas o sentimento não era outro que não fosse de missão cumprida. Espero em algum momento falar aqui de tudo o que aprendi na universidade e com as pessoas-estrela que cruzaram minha história. E mesmo que elas nunca leiam ou saibam dessas palavras, é fato que são as pessoas, sempre, que fazem a diferença na vida que a gente escolhe. Wendy, Fernanda, Barbara, Anna, Steven, Clara.
Foto: Reprodução/Instagram/luanasampaio.doc
Mas gostaria de pedir licença pra agradecer também a mim. Em novembro de 2023, à noite, chorei no jardim do jornal depois de receber a negativa da minha primeira tentativa à bolsa. Em julho de 2024, do lado oposto do mesmo jardim, liguei pra minha mãe, irmã e companheiro pra dizer que meu sonho ia se realizar.
Agradeço a mim, a quem confiou em mim e às estações que passaram. Por um período me senti vivendo dentro de livros e filmes. Eu que tanto busco por imagens a filmar, me tornei uma imagem de mim mesma. Dessa imagem e de quem me tornei, nunca vou esquecer. Um dia contei pra minha mãe que eu poderia me acostumar com a vida que eu tinha lá, e hoje eu vivo tanto com o melhor que vivi, como com o maravilhoso que ainda quero conquistar.
Foto: Reprodução/Instagram/luanasampaio.doc
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