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Nos tempos da televisão
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Professor, artista e pesquisador do doutorado em Letras da UFC

Nos tempos da televisão

Gabriel Ângelo (com participação de Abelardo Ferreira), ambos ilustradores e ex-alunos do professor Lúcio Flávio Gondim  (Foto: Gabriel Ângelo )
Foto: Gabriel Ângelo Gabriel Ângelo (com participação de Abelardo Ferreira), ambos ilustradores e ex-alunos do professor Lúcio Flávio Gondim

A recente estreia de uma telenovela com Dom Pedro II e nossos conflitos do fim do século XIX como protagonistas vem relembrando para muitas brasileiras e brasileiros o trabalho de um governante que tem no incentivo à Cultura e no apreço à Democracia alguns dos seus valores e práticas principais. Esse fato parece uma história utópica diante de 2021 com incêndios em cinematecas, "universidade para poucos" e todo um ambiente de instigação a rupturas, mas não é, é história nossa. E não é coisa de novela!

"Nos tempos do imperador", com o fabuloso Selton Mello no papel principal, apesar das doses de amor romântico típicas (e já saturadas) do gênero e de uma cena polêmica na qual sua representação da resistência negra derrapa em um diálogo com conteúdo de racismo reverso, abre um livro de ficção e realidade às seis da noite, horário bom, em que os alunos do turno da tarde já estão liberados e os da noite estão prestes a iniciar seus estudos. É também o horário em que muitos de nós jantam e se preparam para seus programas noturnos incluindo o de abrir livros. Essa, porém, não é uma atividade possível para a maioria de nossos cidadãos.

Seja por falta de incentivo ou por pura praticidade, ainda elegemos em primazia o episódio de série, o filme ou o capítulo da novela como entretenimento da noite. Nesse contexto, uma trama que conte parte da trajetória histórica e social que nos fez ser o que somos é mais que útil, é urgente para um povo que repete erros seculares e crê em curandeiros políticos desde sempre. Por outro lado, há quem cada vez mais odeie televisão, considerando-a ultrapassada e fútil. Proponho aqui um exercício intermediário e o faço por experiência própria.

Na ausência de dinheiro para comprar objetos ou para ter programas de lazer na infância e pré-adolescência, aliada à proibição de minha instituição de ensino em nos deixar alugar livros na biblioteca (com o receio de que as obras fossem rasuradas ou perdidas, veja só nosso elitismo!), somente as telenovelas davam-me o direito à ficção. Sim, perdi muito com esse procedimento e repeti muitíssimos padrões narrativos com algumas tramas e personagens sem profundidades. Porém, aprendi sobre todas as categorias da ficção dramatúrgica e construí um pequeno repertório cultural que me é salutar até hoje.

Lembro-me, por exemplo, quando de minha preparação para a prova do doutorado em Literatura quando lemos "Pode o Subalterno Falar?" da escritora indiana Gayatri Chakravorty Spivak. Num texto árduo, a autora discute, dentre outras coisas, a intervenção britânica na prática do "sati", o sacrifício de mulheres viúvas que se jogavam nas piras funerárias dos corpos de seus maridos. Ao questionar a ideia de tragédia que a visão colonializadora tinha de tal prática, Spivak mostra as condições subumanas com que tais mulheres passavam a ser tratadas com a viuvez e que as levavam a preferir a imolação. Nessa altura do texto, um pensamento me rodou a cabeça ativando uma memória antiga: os capítulos finais de Maya, protagonista da novela "Caminho das Índias".

Também pela minha cabeça recentemente passaram (e perturbaram-me o sono) o jogo entre o Direito e o Tráfico de Bibi Perigosa; a tragédia ética da Helena de "Por amor" e as adaptações para a tv de "Os Maias", "Ciranda de Pedra", "Dois irmãos" dentre outras. Cada uma delas guarda aspectos positivos e negativos, clichês e surpresas e, registra-se, não substituem o prazer e a atividade intelectual que a leitura traz. Porém, esta crônica tem como objetivo lançar luz a um tempo de visualidades ao qual estudantes, professoras e público em geral estamos submetidos. Nesse sentido, uma boa história contada em veículos de massa é, sim, um estímulo à curiosidade e ao possível aprofundamento.

Esse é o trabalho do audiovisual quando em diálogo com textos e demais documentos canônicos, o que me recorda um trabalho com a HQ de "Dom Casmurro" em uma turma de oitavo ano. De olhos vidrados, alunas e alunos devoraram o Machado adaptado, com minha recomendação incisiva de que fossem depois ao original encontrar Bentinho e muito mais fantasmas... No último encontro de leitura, projetei à sala alguns trechos da série ultrapop (e maravilhosa) "Capitu" dirigida por Luiz Fernando Carvalho. Aí a classe rendeu-se completamente ao Velho Bruxo!

Machado de Assis, inclusive, é um dos personagens retratados na abertura da novela recém-estreada sobre o segundo regente brasileiro. Torço sobremaneira para que os autores o coloquem dentro da narrativa. O Brasil merecia, em verdade, uma ficção em capítulos com alcance nacional apenas sobre o menino suburbano neto de escravos que criou a Academia Brasileira de Letras. Em verdade, nosso país tem de conhecer nossos ancestrais assim como conhece Carminhas e Nazarés. As salas de aulas nunca mais seriam as mesmas!

Foto do Lúcio Flávio Gondim

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