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Oásis de Bethânia
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Professor, artista e pesquisador do doutorado em Letras da UFC

Oásis de Bethânia

Tipo Análise
Ex-aluno do professor Lúcio Flávio Gondim, Thierry Pereira assina a ilustração da coluna deste sábado  (Foto: Thierry Pereira)
Foto: Thierry Pereira Ex-aluno do professor Lúcio Flávio Gondim, Thierry Pereira assina a ilustração da coluna deste sábado

Maria Bethânia é uma aula de Brasil com S, esse país antiquíssimo como reza de vó, porém esquecido como uma idosa enferma. Querendo falar de Música e Educação por aqui, com uma miríade de subtemas interessantíssimos, peço licença à mãe Oyá para falar da menina dos seus olhos! A abelha rainha da MPB se desmistifica, com o avanço do tempo, em meu imaginário e se torna cada vez mais tangível em sua complexidade e transcendência. Em nossas salas de aula, por exemplo, é este procedimento de aproximação que deve se repetir, como uma canção bonita.

Da imagem distante - uma intérprete de letras difíceis tanto quanto sua suposta personalidade - passei a contemplar Bethânia como uma amiga, graças à descoberta de um disco de nome "Amor festa devoção", dedicado à Dona Canô pouco tempo antes da morte da matriarca dos Veloso. Em um palco coberto de pétalas vermelhas, Bethânia pisa o solo santo e profano do seu país para cantar a Dor, a Paixão, a Espiritualidade, a Voz e o Silêncio. Foi amor à milésima vista, desses que chega "nascendo, rompendo, rasgando...", "desvirginando a madrugada...", sentimento assim que abre a porta de casa para repousar nela o mundo que não se viveu junto outrora, mas que está à disposição para abraçar e agradecer o ser querido. Daí veio "Carta de Amor", outro oásis com registro audiovisual também completamente disponível na internet. E, então, eu iniciava uma caminhada no sem-fim de uma carreira exuberante e pouco igualável. Sobremaneira, educativa...

A nova imortal da Academia de Letras da Bahia, há algum tempo, coroa algumas de minhas aulas com suas interpretações. Não satisfeita em nos ensinar a entonação, a musicalidade e a força de cada sílaba poética com sua declamação - reforçando, tal como a também imortal Fernanda Montenegro, que letras vão muito além do texto verbal - a irmã de Caetano aceita, desde 2016, comandar um programa no canal Arte 1 de nome "Poesia e Prosa" em que os maiores nomes da literatura nacional são debatidos e cantados junto a grandes pesquisadores e artistas. Esta é, sem dúvidas, a melhor aula que eu posso dar: ver e debater Arte junto de Maria Bethânia com meus estudantes. Imagino o que agora sentirão ao descobri-la como podcaster a partir do próximo mês em seis episódios produzidos pelo Instituto Moreira Salles discutindo Lispector e Drummond, bem como as relações desses autores com a Música!

Falando em projetos, lembro-me de ver na TV um de nome "Brasileirinho", homônimo a um dos álbuns mais festejados de Bethânia, por meio do qual a professora carioca Vânia Aparecida lecionava História. Cada aluno escolhia uma canção e trabalhava nela as temáticas curriculares da disciplina. Até aqui, pouca novidade… O causo é que em 2006, instigados pelas pesquisas sobre o cancioneiro da nossa rezadeira da voz, os estudantes da professora lotaram a caixa de e-mail de Maria Bethânia que, desde então, tomou conhecimento do projeto, chegando a contribuir com as aulas ao tirar dúvidas e propor atividades.

Por hora, para uma vez mais purificar o Subaé, Maria Bethânia lança em 2021 "Noturno", um álbum sobre luminosidade em meio às trevas. A maior parte das canções fora lançada na live iniciada com o grito de independência coletivo do século XXI: "Eu quero vacina, respeito, verdade e misericórdia!". Axé, minha senhora. Defronte à tela em que a via, benzia-me e buscava alguma cura à dor, ouvi em sua voz "Dois de Junho", composição de Adriana Calcanhoto. No coração da América Latina, em um país negro e racista, foi catártico ouvir o destino de Ícaro do jovem Miguel, morto aos 5 anos após despencar de 35 metros de altura em um prédio do Recife na busca por sua mãe, a empregada doméstica Mirtes Renata.

O menino com nome de meu arcanjo protetor é a alma de cada um de nós, jogada à queda-livre por mãos falsamente superiores, mas certamente desfalcadas de toque. As canções, por outro lado, abraçam o viver dilacerante, pensando a atualidade que renova pactos sangrentos ao criar nela esperanças de vida terrena. Música é exercício de presença. Salve as folhas, salve o humano, salve o país do futuro que regride todo dia mais há 521 anos! Salve Maria Bethânia, a voz do domingo triste e do tambor curativo! Salve os ensinamentos da ancestralidade, salve o Sagrado do Brasil!

Foto do Lúcio Flávio Gondim

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