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Seria papel da escola ensinar a ser negra, a ser negro?
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Professor, artista e pesquisador do doutorado em Letras da UFC

Seria papel da escola ensinar a ser negra, a ser negro?

Tipo Análise
Ex-aluno do professor Lúcio Flávio Gondim, Emanuel Dias assina a ilustração da coluna de hoje (Foto: Emanuel Dias)
Foto: Emanuel Dias Ex-aluno do professor Lúcio Flávio Gondim, Emanuel Dias assina a ilustração da coluna de hoje

Hoje repetimos um procedimento muito caro a mim, o de ceder minha voz a sujeitos que vivenciam na pele temáticas urgentes à vida escolar. Convido, portanto, para falarmos sobre racismo e educação, a professora, mestranda, atriz e amiga de universidade, Karina Morais. Vamos escutar sua voz? Ela diz…

"Gosto de começar por aqui os questionamentos em torno da relação entre a sala de aula e a construção de práticas pedagógicas antirracistas. A pergunta que é título desta coluna, como a considero, é mobilizante. Nela, implicam-se interrogações tanto sobre os papéis sociais da escola, enquanto instituição de ensino e de formação, quanto sobre o que vem a ser o ser-se negra/o. Pude colhê-la, essa indagação, de uma matéria que registrava a fala realizada pela poeta, ficcionista e professora Geni Guimarães para um público de professores no Encontro de Semifinalistas da Olimpíada de Língua Portuguesa.

Na ocasião, a escritora relata aos seus ouvintes - ou até mesmo diríamos, desabafa - que, tendo vivido uma trajetória educacional ferida de ausências, 'minha formação acadêmica não me ensinou a ser negra'. Sobre isso, devo dizer que as palavras de Geni me atingem em cheio. Saídas da intimidade de sua experiência de pessoa negra que se percebe divergente em um mundo de brancos para brancos, o relato da escritora se encontra aos da maioria quase absoluta de negras, negros e negres na sua relação com a vida escolar. Estes modelos e projetos político-pedagógicos com os quais as instituições de ensino vêm nos (des)formando mais nos treinam para rejeitar nossas identidades do que nos educam para acolhê-las e vivenciá-las.

A constatação de Geni, 'minha formação acadêmica não me ensinou a ser negra' - que, se hoje aparece sucinta e lúcida, nasce de um passado latente envolvido por violência e dor -, ao tempo em que nos interroga, também nos lança a resposta: ser-se negra/o é uma aprendizagem, e a escola tem sua responsabilidade nisso. 'A escola não ensina a criança negra que ela é negra, que ela pode, que ela tem capacidade', completa a escritora na mesma fala. Em uma sociedade na qual o racismo e o genocídio antinegros se instalaram como elementos cotidianos e estruturantes de nossa formação econômica, política e cultural, ensinar a ser negra/o se trata de positivar, por meio da educação orientada das relações étnico-raciais, a experiência das pessoas negras com seu pertencimento e sua identidade racial.

Ser negro é um tornar-se negro, sintetizou a psicanalista brasileira, também uma mulher negra, Neusa S. Souza. Em uma formação sociocultural cuja classe, ideologia, estética e expectativas são majoritariamente brancas, as crianças e jovens negras/os se encontram submetidas/os ao constrangimento, ao massacre e à negação de sua identidade histórico-existencial. Conformado pelo racismo - e o racismo antinegro acompanha a medida da supremacia branca - nosso imaginário concebe a nós mesmos, pessoas negras, segundo o universo conceitual branco para o qual desempenhamos a direta oposição daquilo que pode se caracterizar como o bom, o belo, e qualquer outra qualificação apreciável.

É nesse sentido que tornar-se negro é sobretudo um empreendimento político pelo qual assumimos uma nova consciência e uma nova prática direcionada ao reconhecimento positivo de nossas identidades, histórias e memórias. Minha colocação, na discussão presente, é se a escola de ensino básico - entendida como espaço de mediação social em que se materializa a configuração político-pedagógica de um sistema educacional mais amplo - está disposta a assumir essa tarefa, que é não só necessária, mas urgente. Certo é que o racismo (e suas consequências) não tem seu nascedouro na escola, tampouco seriam as instituições de ensino básico a trincheira última para a derrocada da violência racial, mas é indispensável que nós, professoras, e professores, compreendamos nossas salas de aula como campos de batalha, em que se fazendo presente o racismo, seja na sua manifestação individual, institucional ou estrutural, também se faça presente o combate.

Como professora de linguagens, e especialmente como professora de literatura, me importa que minhas práticas pedagógicas de letramento possam se contrapor ao imaginário sociocultural eivado pelo racismo antinegro, e não tão somente reiterar, por meio das produções simbólicas, a violência que se processa no corpo social. Como professora de linguagens, e mulher negra, me importa conceber um ensino de literatura em que pessoas negras possam existir em sua humanidade, pluralidade e complexidade, em sua dignidade, portanto. Escolho romances, contos, poemas para minhas aulas como quem abre possibilidades de encontro, seja o encontro entre uma professora e seus alunes, o encontro delas/es com o texto literário, ou seu encontro consigo; encontro esse que pode colaborar para o reconhecimento, para a reparação e para a sutura das feridas deixadas pelo racismo.

Pelas salas de aula de periferia nas quais já trabalhei, procurei sempre estender um livro aos meus alunos negros como quem faz um convite, como quem diz 'venha', como quem chama para 'nos tornarmos negras e negros juntes', porque essa nossa negrura não precisa mais nos envergonhar. São esses livros-encontros, ou livros-convites, aqueles em que abandonamos a comum posição de outra/o do branco, e nos tornamos sujeitas e sujeitos de nossas narrativas e representações - aqueles em que tecemos nossas escrevivências".

Foto do Lúcio Flávio Gondim

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