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Xirê Sapucaí: Enugbarijó
Foto de Lúcio Flávio Gondim
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Professor, artista e pesquisador do doutorado em Letras da UFC

Xirê Sapucaí: Enugbarijó

Tipo Opinião
Ilutração de Claudicélio Rodrigues (a baiana é um recorte de imagem Creative Commons de Geraldo Viola) (Foto: Claudicélio Rodrigues)
Foto: Claudicélio Rodrigues Ilutração de Claudicélio Rodrigues (a baiana é um recorte de imagem Creative Commons de Geraldo Viola)

Mário de Andrade possui um poema chamado "Carnaval carioca" nascido de uma viagem que fez ao Rio em 1924 a fim de visitar Manuel Bandeira. Houve um desencontro, pois Bandeira estava em Petrópolis, e Mário se viu sozinho na cidade. Era carnaval, e ele, que se apelidava de "turista aprendiz", caiu na folia, não sem observar, extasiado, as figuras que compunham aquela festa, um rito religioso e mágico. Mário diz que vai deixando a sua frieza paulistana para se mover diante do espetáculo: "Tremi de frio nos meus preconceitos eruditos/ Ante o sangue ardendo do povo chiba frêmito e clangor/ Risadas e danças/ Batuques maxixes/ Jeitos de micos piricicas/ Ditos pesados, graça popular... /Ris? Todos riem…".

Naquele início de século, os desfiles aconteciam na Avenida Central (hoje Avenida Rio Branco). Depois mudaram-se para a Av. Presidente Vargas. Só em 1984 é que temos o carnaval no palco da Av. Marquês de Sapucaí. No entanto, poucos sabem que o sambódromo leva o nome de um professor, um docente que muito contribuiu para um ensino progressista, menos careta e mais voltado para todas, todos e todes. O sambódromo tem o nome de Passarela Professor Darcy Ribeiro, e o seu projeto foi feito por um arquiteto "comunista", Oscar Niemeyer, contratado por outro "comunista", Leonel Brizola.

A Praça Onze, onde fica a passarela, sempre foi reduto dos desprezados. Era por ali o terreiro de candomblé da Tia Ciata, a matrona do samba. Quando o governo Brizola decidiu construir um lugar que comportasse a grandiosidade dos desfiles, foi escolhido justamente um chão sagrado aos pobres, pretos, descendentes de escravos e demais fiéis/brincantes, os quais misturavam seus ritos ao samba. Não havia, nem há divisão entre sagrado e profano. Tudo é oração. Mário de Andrade sintetiza: "Carnaval... A baiana se foi na religião do Carnaval/ Como quem cumpre uma promessa./Todos cumprem suas promessas de gozar".

O carnaval é a religião do gozo. E por gozo entenda-se a explosão dos prazeres interditados, sobretudo pela voz dos conservadores e fundamentalistas. A festa da carne, ou o "carro naval" do deus sol, é o estado de suspensão no qual tudo pode ser outra coisa e sobretudo os pólos podem ser invertidos: o alto se abaixa e os rebaixados se exaltam. Magnificat! Embora os direitos de transmissão do carnaval da Sapucaí tenham sido usurpados por uma oligarquia (hoje, tal a festa, demonizada) e mesmo que o desenho do sambódromo seja estratificado como o Brasil, com camarotes caríssimos com bebida à vontade, enquanto nas arquibancadas desconfortáveis pena a classe média (quanto mais perto do centro da avenida, mais caros os ingressos), quem faz a festa é a Favela em seu dia de glória.

Na verdade, o grande feito do carnaval carioca, que serve de modelo para outros estados, é o de narrar a história do ponto de vista dos oprimidos, não dos opressores. Eis o que Walter Benjamin chamou de "escovar a história a contrapelo", ou seja, tirar os enredos dos avessos, dos não-ditos. Mesmo quando as figuras históricas oficiais foram homenageadas, a contrapelo, negros e negras, pobres, bixas, candomblezeiras, umbandistas, mendigos e malandras estavam lá, sambando na cara da História, similar a uma estratégia do sincretismo religioso: quando o santo de devoção não é o santo de devoção coisa nenhuma, mas um orixá. Quem se lembra de uma alegoria da Mangueira que apresentava duas entidades sagradas na avenida? De um lado, Jesus crucificado; quando virava, Ogum. Quem não se lembra do Cristo Redentor de Joãosinho Trinta encoberto por ordem da Igreja?

Estamos em 2022, depois de ficarmos dois anos sem carnaval. A peste a ser combatida é outra... Vimos a Beija-Flor vindo com uma aula que poderia muito bem ter saído dos livros de Achille Mbembe, Frantz Fanon, Lélia Gonzalez ou Sueli Carneiro: empretecer o pensamento: "Nada menos que respeito, não me venha sufocar/ Quantas dores, quantas vidas nós teremos que pagar?/Cada corpo um orixá, cada pele um atabaque/Arte negra em contra-ataque". O mesmo tom do Salgueiro mandando a verdade numa cidade onde a religião se filiou ao banditismo da milícia: "No Rio batuqueiro/Macumba o ano inteiro/Não nego meu valor, axé". E dá-lhe a orixazada ocupando a avenida nos seus cavalos de santo em corpos de peitos à mostra de gays, lésbicas, trans e travestis junto a cis e héteros que contam sua história particular em uma história coletiva. Eis a boca que tudo come (e cospe): Enugbarijó, segundo o professor Luiz Rufino, autor de "Pedagogia das encruzilhadas".

Mário de Andrade, exultante com a folia carioca, em certo momento do seu poema faz mesmo uma oração: "Senhor! Deus bom, Deus grande sobre a terra e sobre o mar. /Grande sobre a alegria e o esquecimento humano. Vem de novo em nosso rancho, Senhor! Tu que inventaste as asas alvinhas dos anjos. E a figura batuta de Satanás…". Contra quem ainda divide o mundo entre bem e mal, acreditando em um deus todo perfeição dentro do qual qualquer elemento distinto não tem espaço, a campeã deste carnaval histórico lembra que a Sapucaí não é dionisíaca, é exusíaca. Porque Exu é a rua, o movimento, a literatura, a bíblia, o carteado, o jornal, o samba enredo, o pássaro morto ontem, a pedra jogada amanhã… E caso queira jogar no lixo nosso texto, pensamento e alma, Grande Rio e Estamira, Pombas Giras e Tranca Ruas vêm dizer que do fim do mundo vem a voz dos enjeitados com a força da ranhura, da fresta, do (in)visível. Não há violência que dê conta de tanta coragem. E de tanto Axé.

*Texto escrito com Claudicélio Rodrigues (professor do Departamento de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Ceará)

 

Foto do Lúcio Flávio Gondim

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