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"Coisas sagradas permanecem"
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Professor, artista e pesquisador do doutorado em Letras da UFC

"Coisas sagradas permanecem"

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Tipo Opinião
Gal Costa e Marília Mendonça uniram o País por meio do luto  (Foto: Carol Siqueira/Divulgação)
Foto: Carol Siqueira/Divulgação Gal Costa e Marília Mendonça uniram o País por meio do luto

A Marcus Preto

Duas vozes brasileiras se calaram, mas não param de cantar. Por uma intuição ou um encaminhamento do destino, elas se encontraram antes da despedida e sussurraram que cuidar de longe é também amar. Na prática da indústria musical, os versos da canção se ratificam. Marília Mendonça, por exemplo, vem sendo a cantora mais tocada na principal plataforma de música atual. Além dos fãs que almejam e conseguem colocá-la nos charts, os cidadãos comuns a escutam incessantemente tanto pela potência de uma voz única quanto sobretudo pela grandeza inclusive literária das composições. Do outro lado da imensa avenida da MPB, Gal Costa me emudeceu com sua partida, deixando a eternidade de suas gravações, recantos, transgressões e acalentos. Em meio a um Carnaval (pós) apocalíptico, louvarei ambas e tentarei, mesmo sem ser um Marcos Sampaio e dele sendo apenas leitor, pensar como conduzir uma recepção à altura das carreiras históricas dessas mulheres em sala de aula.

A maravilhosa página "Maria Bethânia Verdes Telles Veloso" listou os motivos da glória da musa tropicalista, uma das maiores vozes do mundo e, para muitos, a maior do país. Aqui as canções e os ritmos eternizados por Gal: "Zanzando" (Lambada); "Miami Maculelê" (Funk); "Noites Cariocas" (Choro); "Forró número um" (Forró); "Canta Brasil" (Samba); "O bater do tambor" (Frevo); "Aguarde agora" (Axé); "De onde vem o Baião" (Baião); "Bota a mão nas cadeiras" (Swingueira); "Balancê" (Marchinha); "Último blues" (Blues); "Um dia de domingo" (Balada); "Salvador não inerte" (Samba-reggae); "Rumba de Jacarepaguá" (Rumba); "Meu Doce amor" (Rock); "Dez anos" (Bolero); "Fim de caso" (Samba Canção); "I didn't know what time it was" (Fox-trot); "A última estrofe" (Valsa); "Índia" (Guarania); "Chula" (Raiz); "Sublime" (Disco)...

Eu poderia e ainda tentarei com algum empenho falar de minhas palavras sobre essa artista, embora provavelmente esbarre no silêncio engasgado de seu sumiço corporal. Enquanto encontro o que dizer, recorro a estudiosos para os quais "A obra de Gal Costa representa, nesse universo, um parâmetro do canto brasileiro moderno, tanto pelo diálogo que estabelece com a tradição quanto pela ruptura que promove em relação aos estilos consagrados da Era do Rádio." Beatriz Raposo de Medeiros, professora do Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo (USP) e Fabio Cesar Alves, professor de literatura brasileira na USP falam ainda do seu "canto elementar, como se dele fosse restar um som que coincidisse, no limite, com o silêncio".

Assim, calado, sempre recorri e recorrerei cotidianamente a Gal para que meu coração consiga silenciar. A força do meu amor nela encontra acolhimento e alegria brasileiros, desses estados que, como o samba, são a "tristeza que balança". É cronicável que a notícia do desaparecimento físico e absurdo de Gal tenha me chegado quando em sala de aula. Compartilhei a notícia em imediato com a turma com a qual eu havia estudado há pouco o Tropicalismo. Os estudantes se assombraram, talvez tocados pelo conhecimento construído, talvez pelo meu choque e luto. No entanto, não demorou e a canção que tocava na caixa de som do terceirão cansado era dela… A rainha da sofrência!

Marília Mendonça é uma das mais sentidas perdas do cemitério universal em que nos transformamos nos últimos anos. Eu chegava de uma das primeiras aulas pós-pandemia quando diante da TV torcíamos para que as vestes quadriculadas resgatadas de um avião abraçado por uma cachoeira não fossem um sinal de fim de trajetória. Oxum, contudo, acalentou e acolheu a canceriana-leonina que, ainda menina, escreveu e cantou profundíssimos afetos e ações de mulheres e de homens. Dados do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), a dão conta de 324 canções em seu nome e outras 391 gravações cadastradas em parceria. Há ainda 98 canções inéditas jamais lançadas desta artista que bateu todos os recordes possíveis de uma carreira construída no mundo digital. Fosse unicamente uma questão numérica, teríamos um deslumbrante repertório. Temos aqui, no entanto, uma obra. A qualidade dramatúrgica de Marília garante sua apreciação e a máxima de que o povo sabe o que é bom. Mais: que tem seu próprio cânone.

"Leão", lançada em versão brega e arrasadora postumamente, é a canção em língua portuguesa mais ouvida da história da Spotify em um único dia e lidera as paradas da plataformas há semanas e semanas. Neste EP, introduzindo o clássico "Morango do nordeste", Marília faz uma declaração de honestidade e intensidade. Não é difícil entender as razões destes sucesso. As canções vêm manifestando um desejo reprimido de amor em tempos em que "emocionar-se" virou um demérito e até um problema ao gozo, cada vez mais desumanizado. Sem falar nos golpes mortais dos apps de paquera! Há, assim, na Música uma expressão do afeto legítimo e problemático ao qual também chamamos "vida".

Curioso perceber que mesmo tamanhas popularidades não garantem um reconhecimento coletivo tácito. É assustador ver alunos e alunas que desconhecem completamente a música para além do funk, do forró de favela e de algum pagode romântico de sucesso. Ao passo que surpreende vê-los cantar todas as canções de "Poesia Acústica", fazendo com que eu conheça o grupo e o coloque em um texto. Parece caber a nós, profissionais da educação e da arte, refundar as bases de nossa cultura na sociedade. Tudo sem grandes pretensões, agindo sempre no micro, fora da elitização que se esconde por trás da cultura de massa. Se a escola virou um lugar para "comer, rezar e amar", como concluí dias desses em uma café com uma amiga professora e artista, que saibamos cotejar dores melódicas como fiz, certa aula, com "Nossos momentos" de Gal, sofrência classuda da emipebê.

Em verdade, quando a individualidade toma conta de tudo e as crises, as ameaças atômicas, os terremotos, os algoritmos, as big tecs, o golpe de estado, o garimpo ilegal, o ChatGtp com a "substituição" de nossa linguagem e, claro, o par sexo-dinheiro dinamitam tudo o que parecia existir. Só o que ainda insiste é o Sagrado: muitas vezes, guardado no Popular, seu amante. Sinto que nossa saturação com séries, estreias de filmes, coreografias, podcats e livros independentes é tão toxica quanto afetos que (se) partem. O fio da Vida e Arte que nos juntava parece também ter sido rompido pela inteligência artificial do capital. Plutão em Aquário: é a morte de um tempo. Aí só um canto longe e dentro leva nossos espanto e solidão para o encontro com a alma, tal um aluno que assim me resumiu o que aprendeu durante o último ano: "Adorei as músicas, professor". É isso mesmo! "Espírito é o que enfim resulta. De corpo, alma, feitos: cantar…".

Leia no O POVO + | Confira mais histórias e opiniões sobre música na coluna Discografia, com Marcos Sampaio

Foto do Lúcio Flávio Gondim

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