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O incendiário e osbombeiros
Foto de Lúcio Flávio Gondim
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Professor, artista e pesquisador do doutorado em Letras da UFC

O incendiário e osbombeiros

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Tipo Opinião

Talvez tenha sido mesmo 20 anos atrás, conforme dizem os registros de morte de Raquel de Queiroz, quando eu passeava pelo salão de festas de meu então colégio, que li "A incendiária e os bombeiros". Parte do texto publicado em O POVO pela cronista mor cearense havia sido anexada à placa que nos explicava o rebatismo da escola com o nome da cearense. Ainda sem entender bem a respeito de "golpes", "Getúlios" e afins, o Lúcio Flávio de dez anos compreendeu bastante bem que uma escritora havia sido trancada em um quartel por longos 30 dias. Assim, bem antes de estudar as memórias de cárcere da literatura brasileira e de descobrir as polêmicas relações de quem escreve com quem comanda nossa des-democracia, passeei pela área social de minha instituição pedagógica, um colégio militar, não apenas reconhecendo a potência estética daquele (e do meu) aprisionamento, como decretando: "Um dia ainda serei um escritor e publicarei no jornal uma crônica (sempre adorei esta palavra) com este mesmo título".

Sempre que conto ter passado uma década dentro de uma órgão educacional regido por militares provoco choque e, mesmo, alguma revolta. Assim, acabo por necessitar discutir tal capítulo de vida seguido de uma explicação quase óbvia: onde um filho de motorista de ônibus e de uma professora de reforço escolar conseguiria estudar com qualidade pagando R$25 mensais? Se isso soa difícil agora, com as transformações e melhoria da rede pública de ensino cearense, era impossível no começo do século, quando eu experimentava pela primeira vez o uniforme vermelho, branco e marrom que marcaria minha vida. Não apenas para o bem.

Também dizer que fui discente no colégio dos "bombeiros" parece aplacar o abismo entre o militarismo e a transgressão que me caracteriza hoje como artista e como pessoa. Teria sido pior se eu estivesse rodeado de policiais ou imerso na rotina do exército. Sobre isso, o eu criança já parecia formado, pois, na futura crônica, eu me havia prometido falar da clausura em ser um corpo militarizado, apesar da gratidão pelos ensinamentos de algumas generosas e delicadas pessoas, sobretudo mulheres (e todas civis!) que passaram por minha formação. Os minutos perdidos de aula com marchas injustificáveis na quadra no calor do fardamento com dupla camisa, meia e sapatos sociais, além de uma boina no sol fortalezense já seriam suficientes. Entretanto, houve mais.

Ainda no terreno do vestuário, lembro perfeitamente quando, já nos anos finais do ensino fundamental, cruzei com um militar após uma manhã de aulas e ouvi "você está um lixo". O tratamento nada didático que tinham conosco somou-se a episódios inesquecíveis como em uma ida ao banheiro. O lugar havia sido transformado em um vestiário pós serviço e ali 15 bombeiros tomavam banho nus, enxugavam-se e riam. Recordo-me nitidamente do meu choque ao voltar do toillet à biblioteca e procurar palavras para narrar o causo aos "amigos". Aliás, eis outro senão desta época: a sociabilidade. Todo o véu militaresco nos cobria e tentava fracassadamente igualar apagando particularidades identitárias (eu e muitos só viemos saber que nossos cabelos, sempre cortados na máquina 1, eram cacheados somente na faculdade). A divisão social entre os estudantes, no entanto, mostrava-se com diferenças gritantes e ainda mais violenta.

Com os anos, passei a possuir uma teoria de que toda a repressão e controle de corpos se não encantava (há quem ame e, como Raquel de Queiroz, declare-se também bombeira ou bombeiro), "enlouquecia" até no máximo o primeiro ano do Ensino Médio. Foi nesse ano escolar que uma estudante incendiou uma lixeira, prática comum das escolas brasileiras, mas absolutamente inimaginável na escola dos apaga-fogo. Penso que essa rebelde foi expulsa, mas torço para que ela saiba ter feito aquilo em nome de todos os professores que jamais puderam e ainda não podem fazer greve; pelos poetas e artistas tornados bélicos pelas contingências (um beijo para o ex-colega hiperativo que hoje performa uma drag otimamente monstruosa!) e, por mim, o menino catolicamente educado e carente da nota dez: mais recentemente, professor rejeitado pela instituição.

Para que a crônica não vire um romance (de 30), sintetizo: a Secretaria de Educação do Ceará, com quem as escolas militares têm um convênio, disponibilizou vagas nesses colégios militares por meio do sistema de lotação dos professores aprovados no concurso de 2018. Apoiado no medo da violência que cada vez mais chega às escolas e no ingênuo sentimento de retribuição, lotei-me no Colégio Militar do Corpo de Bombeiros - Escritora Raquel de Queiroz. E, junto a todos os que comigo fizeram tal escolha, fui renegado (inclusive presencialmente) por coordenadores e gestores até que o Conselho Estadual de Educação acolheu o argumento de que não tínhamos formação em Pedagogia e solicitou nossa remoção.

Assim, este quinquagésimo texto da coluna "Educação e Arte" volta ao Passado para presentificar dores e glórias que o Futuro pode (voltar a) fornecer. Com respeito e entendimento por quaisquer pessoas que vejam na disciplina e na rigidez ofertada por instituições não-civis um caminho para seus filhos e filhas, lembro: militares são militares. De algum modo, ali o medo, que tanto molda e organiza o coletivo, marca o indivíduo. Esse é o preço que se precisa pagar? O belicismo não reduz o distanciamento dos valores e práticas pregados por setores sociais conservadores em relação a uma civilização que não se desvencilha da sua alma carnavalesca e algo caótica (como o é a própria vida). Entender o uso de boné, chinelo de dedo e camisa de time pelos estudantes, por exemplo, foi fundamental na escola em que hoje atuo. Porque jamais poderá existir regra sem o rompimento. E disso o Fogo e a Água, tal como a Educação e o Cárcere, entendem muito bem. Eis o fundamento da Arte.

Foto do Lúcio Flávio Gondim

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