
Professor, artista e pesquisador do doutorado em Letras da UFC
Professor, artista e pesquisador do doutorado em Letras da UFC
Na noite de ontem, lancei meu primeiro livro. Não se preocupe, leitor: ainda que pareça, esta não é uma escrita de si, muito menos um autoelogio. Lançar um produto artístico no Brasil, sobretudo em uma linguagem que não guarda mais centralidade no debate público, é um delírio laborioso, porém nunca solitário, embora assim o seja em seu processo de escrita e revisão. Ah, Deusas, as infindas revisões! Isso dá outro texto!! Mas não faz muito tempo que por aqui falamos sobre uma aparente exaustão que sinto chegar às editoras independentes, com mais livros e autores que propriamente leitoras e leitores. Caso não, falta é tempo para a bolha interessada ler tudo isso! Por outro lado (e ser mais um autor publicado em livro comprovou-me), a articulação de profissionais em torno da leitura forma um exército da paz para o qual vale tanto a atuação política quanto a alegria de ganhar uma capa, um prefácio… Até lá e depois disso, muita e muita luta. Conto no corpo!
A "anatomia provisória de Tércia Montenegro" é um primeiro trabalho de longo fôlego, a saber uma dissertação, sobre a autora cearense com quatro livros de contos na carreira (todos nascidos premiados e/ou condecorados logo após nascer) e já três romances publicados (o próximo, "Um prego no espelho", novamente pela Companhia das Letras, já está programado para 2024). Enquanto muitas pesquisas escolhem "gente morta" como objeto de análise, crendo num jargão conhecido da crítica literária, sempre gostei dos vivos. E, infinitamente mais das vivas! Estudar e organizar um pensamento sobre nossas mulheres é registrar a transgressão da palavra nas bocas que por muito tempo não puderam falar ou, pior, escrever, ganhar a cena pública e íntima, premiações e, por fim, brincar de ser memória em um país onde coronéis, jagunços e bandeirantes mantém suas esposas bem atrás dos pilares da recordação coletiva.
Assim, ecoar as obras "O tempo em estado sólido", "Linha Férrea", "O vendedor de Judas", "O resto de teu corpo no aquário" é exercer a escuta, exercício tão em desuso. Escutando Tércia ouvimos Maísa Vasconcelos, Dodora Guimarães, Luiza Nobel, Mumutante, Regina Ribeiro… E, ao mesmo tempo, é não ouvir nenhuma delas, sabedores de que partilhamos de magnífica subjetividade em cada texto. Nas mais de duzentas páginas de "Corpo de Conto", pelas quais passeei pelo Tempo, Espaço, Gênero, Morte e Eros, entrei em mim mais que em qualquer pessoa ou lugar. Tal movimento, porém, só se mostrou possível porque a literatura, a fotografia, a performance e outras linguagens suscitadas pela ex-cronista de O POVO
me mobilizaram.
Um dos pontos curiosos de estudar alguém ainda encarnado é justamente aquele que por vezes mais amedronta: o contraditório. Em 2012, por exemplo, num anúncio de evento em nosso jornal, Tércia diz: "Logo, logo chegará às livrarias a antologia "50 versões de amor e prazer", organizada por Rinaldo de Fernandes e publicada pela Geração Editorial. São contos eróticos escritos por 13 autoras brasileiras (eu e Ana Miranda somos as "representantes cearenses"). No início, para mim foi complicado superar a timidez diante de certos temas e palavras, para me dedicar às quatro histórias picantes que aqui estão publicadas. Durante um tempo, passei por hesitações, até me lembrar: arte é território de liberdade [...]".
A mesma artista fala em entrevista que segue em anexo de minha dissertação, agora livro, que não escreveria um romance inteiro com a temática erótica. Caso o fizesse, seria sob pseudônimo, termo sobre o qual estaria a ruminar mais que sobre o próprio enredo da narração. Todavia, no meio do caminho havia uma pandemia. E, durante a incontornável pulsão de morte que nos tomou, o desejo libertário (manifestado em "creio que ainda farei várias outras narrativas na mesma linha, nem que seja por um simples exercício literário…") afetaria como nunca a autora da prosa desejante "As delícias". O livro, lançado em 2022, afirma o espanto gozoso da contemporaneidade, embora ainda com a alcunha algo intimidada de "prosa erótica-filosófica".
Os bloqueios do e no corpo estão em revisão contínua na escrita da vida e da arte. O receio de ser taxada como regionalista é outra grande questão da obra da autora. E para todes nós. As ruas de Fortaleza, cada vez mais inalcançáveis, ainda são nomeadas literariamente como aldeia quando sempre formaram o país e o mundo (Tércia tem contos traduzidos para o espanhol, francês, inglês, alemão e finlandês!). Prezar pela liberdade de ser e de estar é, então, imperativo, tal se vê no conto "Semelhante ao mar" da autora em discussão: "A casa de José ficava perto do mar, embora nunca no mesmo local. Era preciso mudar constantemente, por causa da areia. Parecia uma casa de brinquedo, fincada na terra e leve de se carregar". Em similar impulso de mudança, Tércia se torna romancista. E performan! E o que mais quiser…
A partir de agora, como aprendi nesta investigação de mestrado, o livro ganha vida própria. Que as iabás e as santas o guiem! Que igualmente me norteem: entraremos em uma booktour, como se nomeou tortoaradamente! Cidades como Quixeramobim, Quixadá e Redenção já tem atividades marcadas em torno de relançamento do livro; clube de leitura dos contos da escritora e pela exibição do documentário homônimo ao livro. Neste gravei e editei os dilemas da construção da dissertação e os variados formatos da artista, contando também com trechos sobre a cidade, o país e um mergulho cinematográfico na literatura que "é uma arte visual", conforme sintetiza a fotógrafa escriba. Porém, pergunto: o que mais devo fazer com os quarenta minutos de filmagem e edição que produzi? O meio fílmico é tão difícil quanto ou pior que o literário?
"Não existe emprego bom", diz meu pai. Nem hobby! (Em que ponto cambiável desse contínuo a Arte vive?) A real, como se diz, é que criar exige irrevogavelmente dar-se conta de uma dezena de outras funções para a qual o caminho é que nos faz aptos: produzir; ser contador de si mesmo; registrar-se; divulgar-se; cavar alguns centimetros em algum jornal local. Toma uma água! Pronto? Pois agora tornamos a: catalogar a vida toda no Mapa Cultural; manejar orçamentos para um plano de atividades completo; justificar o injustificável de que a arte tem um função social altamente transformadora de deus-é-quem-sabe; xerocopiar, imprimir ou assinar digitalmente até a própria alma para comprovar lisura de espírito e, outra vez, de corpo jurídico; abrir uma conta corrente nova só para a demorada grana do edital eticetera eticetera. É tudo isso por trás de um livro ou não tem obra! Feito isso, com muita insistência e sorte, pode até rolar uma crônica de jornal…
Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.