Enfim, Othon Bastos chegou ao Ceará com o delicado "Não me entrego, não!". A produção, com a qual celebra seus 90 anos de vida, cruzou o palco do Cineteatro São Luiz com quase um ano de atraso. Othon até já passou dos 91. Felizmente, continua serelepe como sempre. Com texto e direção de Flávio Marinho, o espetáculo, entretanto, não traz grandes soluções de cena. Ao contrário. Por vezes, é nítido que o ator sobra, transborda, em meio a uma economia de recursos."Não me entrego, não!" é um passeio por parte das memórias da vida e da carreira de Othon Bastos. Tem um tanto de infância, algo do ambiente familiar, um pouco de sua rede de amigos, sua história de amor longeva, algo sobre a projeção no cinema, mas é, sobretudo, uma montagem para festejar seu encontro com o teatro. Othon é literal, inclusive, ao dizer que o lugar da plenitude do ator é o palco. Ele leva isso à letra, mas não encontra base de apoio na encenação, para além do diálogo com textos antigos, como "Um grito parado no ar", de Gianfrancesco Guarnieri, que produziu e apresentou em 1973.
A peça se sustenta basicamente no carisma e vitalidade do artista. Othon joga o tempo inteiro com sua própria memória, transformada em personagem, interpretado pela atriz Juliana Medela. Esse é o ápice de criatividade de Flávio Marinho. "Não me entrego, não!" é um espetáculo sobre memória, nada mais justo do que levá-la à cena. É bonito, poético, ver Othon reconhecendo a seleção um tanto gloriosa que sua biografia incorporou. É funcional, também. Juliana Medela trabalha como um ponto reconfigurado. Se Othon, porventura, esquece algo do texto, ela lembra.
"Não me entrego, não!" é uma festa cuja única atração é o próprio aniversariante. Funciona, sim. Entretanto, não dá a Othon Bastos sua devida dimensão. Ele pode mais, ele quer mais, apesar da idade avançada. Flávio Marinho deixa o ator envolto ao passado, quando o que realmente importa é que ele é e está presente. Absolutamente presente. "Não me entrego, não!" é uma peça velha, em termos poéticos. O cenário, por exemplo, é uma colagem de imagens burocráticas, dando ao cinema um lugar de destaque imperial. Othon carrega a montagem sozinho, embora não faça um monólogo.
Falta a "Não me entrego, não!" o acento contemporâneo com o qual Grace Passô aviva o passado de Maurício Tizumba em "Herança", peça com a qual ele comemora seus 50 anos de carreira. Othon Bastos brilha por si, enquanto Tizumba conta com uma carpintaria que lhe dá suporte. Diante do recorte que "Não me entrego, não!" apresenta, fica a certeza de que suas memórias e seu talento são maiores. Othon Bastos é um ator intuitivo, mas também letrado. Ele combina e domina espontaneidade e técnica. Seu lugar, de fato, é o palco.