Logo O POVO+
Vocação para o futebol, quem tiver que a conserve
Foto de Mailson Furtado
clique para exibir bio do colunista

Mailson Furtado é escritor, dentre outras obras, de À Cidade (livro vencedor do Prêmio Jabuti 2018 – categorias Poesia e livro do Ano). Em Varjota-CE, fundou a CIA teatral Criando Arte, em 2006, onde realiza atividades de ator, diretor e dramaturgo, e é produtor cultural da Casa de Arte CriAr. Mailson escreve, quinzenalmente, crônicas sobre futebol e outros temas

Vocação para o futebol, quem tiver que a conserve

Tal qual Rachel de Queiroz lamentava não ter fé e invejava quem a tinha, quem vê nascer o fervor pelo futebol deve também cultivar com muito carinho tal paixão
Público assiste em Fortaleza à final da Copa do Mundo de 2022, entre Argentina e França (Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Público assiste em Fortaleza à final da Copa do Mundo de 2022, entre Argentina e França

Depois de um fim de semana de muito trabalho, diante da proximidade da estreia de um novo espetáculo teatral que estou na direção. Chego em casa domingo depois do almoço tardio junto do elenco e produção, após uma manhã inteira de ensaios, e apesar de todo o cansaço e preocupações, lá estava o juízo voltado para aquela paixão inexplicável, o futebol.

Diante de uma campanha pra lá de conturbada em 2025, o Fortaleza enfrentava o Corinthians em São Paulo, estando a uma vitória para sair da zona de rebaixamento, o que aconteceria... não fosse...

Bem, prefiro deixar quieto pra não arrumar mais confusão além das tantas que a vida tem me dado. Além do mais, o motivo desse texto não é sobre o jogo ou o seu resultado pra lá de capenga — o 1 a 1 aos 49 do segundo tempo —, mas a provocação de um pensar de algum tempo atrás que toda essa situação me fez memorar e refletir.

Nos últimos anos tenho andado pra cima e pra baixo, por todo o país, participando de eventos literários. Nas frestas dos horários das programações oficiais, um tempinho pra um café, pra uma cerveja. Numa dessas, estava com o amigo e ainda primo distante, Cleiton, no Cariri. Havia pouco tempo desde a final da Copa de 2022, e entre papos de boteco que caminham pra onde Deus quer, um desses chegou no assunto “momentos de catarse pessoal”, e eu trouxe aquele França x Argentina como uma das minhas últimas experiências em algo que me levou a uma transcendência além do comum.

Cleiton, traçando uma linha na areia daquela conversa, diz esmorecendo:

— Vi esse jogo, por que enfim o mundo todo estava vendo, mas não senti nada. Não tenho qualquer vocação para o futebol, sequer pra torcer. Já me esforcei pra ter, mas não tenho. É uma lástima! Isso tantas vezes me fez falta demais.

No mesmo tom seguiu, e trouxe o exemplo de Rachel de Queiroz ao falar sobre sua fé: “Não tenho porque Deus não me deu. [...] Quem tem um pouquinho que a conserve”.

Depois de uma pausa dramática, a conversa seguiu outros rumos e aqui, alguns anos depois, nela eu vim parar, pensando como me faria falta, depois de um fim de semana extenso de atribulações, não ter o futebol para, muito além de me dar raiva ou alegria, permitir, nem que seja por 90 minutos, uma fuga da realidade.

Que sorte, eu diria assim, depois de devanear tudo isso, ter eu essa vocação para o futebol, mesmo que apenas para a torcida. E seguindo parafraseando Rachel, digo “quem a tiver um pouquinho, que a conserve”, afinal quanta falta faria não ter algo para se apegar para além do real. Essa vida louca que o diga.

Foto do Mailson Furtado

Crônicas sobre futebol. Crônicas sobre fatos. Os dois temas juntos. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?