Marília Lovatel é escritora, cursou letras na Uece e é mestre em literatura pela UFC. É professora de pós-graduação em escrita literária e redatora publicitária. Tem livros publicados por diversas editoras, entre elas, Scipione, Moderna, EDR, Armazém da Cultura e Aliás. Vários dos seus 12 títulos são adotados em escolas de todo o país, tendo integrado 2 vezes o Catálogo de Bolonha, 2 vezes o PNLD Literário e sido finalista do Prêmio Jabuti 2017.
Na crônica de estreia de Marília Lovatel no OP+, a escritora aborda o círculo virtuoso da leitura e da escrita cuja travessia entre uma e outra, muitas vezes, transforma leitores em escritores
Foto: N.Santana
Rubicão, rio ícone de travessias simbólicas
O escritor é filho do leitor, assim como o leitor pode surgir do escritor. O que escrevemos nasce do que lemos nos livros, nos outros, no mundo, em nós. Escrever nos leva a ler. Desse modo, perpetuamos o círculo virtuoso em que o menino é o pai do homem, pérola de Machado, que, por sua vez, recuperou-a do poema de Wordsworth, e este certamente deve tributos aos seus contemporâneos e antecessores. Somos resultado de tantos. Mia Couto e Jeferson Tenório, em conversa mediada por Socorro Acioli, na última terça, 31, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, compartilharam com o público as suas influências, respondendo à pergunta, repetida nas mesas de todos os eventos literários. Cada um tem a sua multidão.
Eu quis estrear esta coluna de braços dados com a minha. Com Rachel, Ignácio, Cecília, Clarice, Rosa, Manoel, Tércia, Ana, mestres desse ofício tão poderoso que, na ausência de um assunto específico, permite escrever sobre escrever. Mas não foi a falta de tema que me trouxe aqui e sim a contemplação das experiências amealhadas ao longo da vida. As pessoas querem escrever, porque nada é mais urgente que a necessidade de se fazer ouvir. Elas querem ser lidas, aprender a se expressar melhor e isso é legítimo. Será a vida delas nas páginas abertas, mesmo que se dediquem à ficção.
Pelo país, cursos de formação em escrita se multiplicam – finalmente! Foi grande a espera para quem, diante do primeiro vestibular, correu a caneta nas listas de cursos e escolheu entre a docência e o jornalismo. Minha multidão sempre pediu a voz da literatura. Esteve calada por muito tempo, antes que eu atravessasse o Rubicão.
" Que nenhum ruído interrompa os sabiás, pese nas pétalas, seja mais alto que a chuva que ela achou dentro de si. Nada de sons eletrônicos e de luzes artificiais. A sua multidão aguarda, quieta, em silêncio."
Marília Lovatel, escritora, autora de A Memória das Coisas, entre outros
Desde então, observo as suas margens. Estou em uma delas há uma década. Em setembro, o primeiro livro publicado completará dez anos. No mês seguinte, a idade de mamãe será noventa. Ela, que acaba de descobrir a sua voz na poesia, está na outra margem, fascinada pela brincadeira com as palavras, o jogo das substituições, a transposição das imagens e da emoção ao papel – no caderno de pauta. Esse encontro dela com ela mesma demanda a intimidade do contato com a memória no toque do lápis, no desenho das letras. Não lhe sugeri a frieza de um computador. Que nenhum ruído interrompa os sabiás, pese nas pétalas, seja mais alto que a chuva que ela achou dentro de si. Nada de sons eletrônicos e de luzes artificiais. A sua multidão aguarda, quieta, em silêncio.
Na terceira margem, sentada na canoa metafórica, uma amiga querida percebeu que pode emprestar a voz. Ela está se especializando em uma escrita do afeto, ourivesaria, o legado da existência nas histórias, pois uma vida que se conta fica. Essa atividade, no início intuitiva, porque alguém lhe pediu ajuda para realizar a própria biografia, ela vem aprimorando, com técnica, sentimento, e habilidade para juntar multidões. As minhas palavras, as de minha mãe, as de minha amiga se escrevem e se leem nas três margens do mesmo rio.
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