Marília Lovatel é escritora, cursou letras na Uece e é mestre em literatura pela UFC. É professora de pós-graduação em escrita literária e redatora publicitária. Tem livros publicados por diversas editoras, entre elas, Scipione, Moderna, EDR, Armazém da Cultura e Aliás. Vários dos seus 12 títulos são adotados em escolas de todo o país, tendo integrado 2 vezes o Catálogo de Bolonha, 2 vezes o PNLD Literário e sido finalista do Prêmio Jabuti 2017.
Sobreviver passa a ser o luxo, subsistir, o desafio diário. Não há listas nem lixos nesses casos. Na crônica, o que da lista vira lixo aproxima. Na vida, a ausência das listas e dos lixos desumaniza.
Da crônica O lixo, do escritor Luis Fernando Verissimo, pinço que “através do lixo, o particular se torna público.” No texto, um rapaz e uma moça, vizinhos de apartamentos, se conhecem pela análise daquilo que costumam descartar e assim começam o namoro. Com seu humor habitual, o autor apresenta de que maneira as sobras que produzimos nos revelam. Se tomarmos a outra ponta desse processo de consumo, iniciado no pedido, notaremos que as nossas listas de compras também dizem muito a respeito de quem somos.
Há, por exemplo, em todas, itens despersonalizados e itens particularíssimos. Entre os despersonalizados, a minha última continha dois detergentes, uma caixa de ovos, um quilo de feijão, outro de arroz, um pacote de palha de aço, que a todos atendem. Já o café solúvel da marca que a minha mãe toma – ela, que perto de completar noventa anos, mora com a gente –, a soja de minha filha, vegetariana voluntária desde que decidiu, antes dos dez anos, nunca mais comer os bichos, os abacaxis disputados por meu filho e pelo pai, o tubo de batata transgênica de que os dois não abrem mão, o leite semidesnatado e sem lactose, o brócolis, rejeitado na infância, apesar dos meus esforços criativos ao chamá-lo de arvorezinha crocante, e que agora me cobram como indispensável à salada de legumes, são próprios da minha família.
Considero específicos os artigos de toilette, os farmacêuticos, e, do mesmo modo, as bebidas, os sucos integrais, as cervejas que preferimos aqui em casa e os vinhos que eu aprecio. Inclua-se nesse rol dos determinados a água mineral, pois, apesar de a Ciência classificá-la como incolor, inodora e insípida, há predileções quanto ao gosto, à limpidez, à cor da embalagem e ao perfume do lenço com que se higieniza a boca do garrafão. São de uso comum as cenouras, os tomates, o cheiro-verde, o sal e o açúcar. Não se exigem a procedência das cebolas, do alho nem dos pimentões. O curioso de analisar as nossas listas é descobrir os hábitos que nos caracterizam e em que medida eles predominam.
Uma lista mais personal ou menos particularizada sugere algo que escapa à esfera consumista e se aloja no campo das relações interpessoais, dos laços afetivos. Sinaliza a importância que se dá às necessidades e aos gostos daqueles com quem convivemos. O que significa que quando famílias de baixa renda são privadas da possibilidade de escolha, por razões óbvias, elas perdem o direito de expressar as individualidades de que são compostas. Sobreviver passa a ser o luxo, subsistir, o desafio diário. Não há listas nem lixos nesses casos. Na crônica, o que da lista vira lixo aproxima. Na vida, a ausência das listas e dos lixos desumaniza.
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