Marília Lovatel é escritora, cursou letras na Uece e é mestre em literatura pela UFC. É professora de pós-graduação em escrita literária e redatora publicitária. Tem livros publicados por diversas editoras, entre elas, Scipione, Moderna, EDR, Armazém da Cultura e Aliás. Vários dos seus 12 títulos são adotados em escolas de todo o país, tendo integrado 2 vezes o Catálogo de Bolonha, 2 vezes o PNLD Literário e sido finalista do Prêmio Jabuti 2017.
Não calculei o retorno dos óculos no futuro convertido em presente, quando comecei a afastar o livro para entender as letras miúdas. Talvez, de certas coisas não haja modo de fugir. Tudo bem.
Foto: Pixabay
Existem coisas das quais não se foge com o tempo: óculos
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Há aproximadamente vinte e cinco anos, enfrentei a cirurgia-sonho de quem vê mal de longe. Eu tinha a metade da idade que eu tenho agora e o dobro da coragem para me submeter a um procedimento desses, ainda mais por se tratar de uma técnica nova no Brasil da época. Depois de tanto tempo vendo o mundo através das lentes de vidro ou de contato, quis me libertar. E, mesmo temerosa dos riscos de acontecer algo errado, fui, fiz.
Deu certo, e, ao contrário do que pensei, não saí com tampões nos olhos. Sim, olhos. Entre a prudência de operar uma córnea por vez, em datas diferentes, precisando repetir a circunstância incômoda ou dolorosa – a descoberta ocorrida apenas durante a aplicação do laser –, troquei o seguro pelo rápido, como se toma de gole único um remédio amargo, concentrado, não diluído na água.
Passei um fim de semana na penumbra do quarto, cumprindo a recomendação médica, e logo voltei à rotina das atividades profissionais. Ver sem nenhum auxílio foi tão revolucionário em minha vida quanto a experiência de enxergar o mundo com os óculos. As notas baixas e a necessidade de sentar na carteira da frente para copiar a matéria – indícios clássicos – me levaram ao oftalmologista, de onde saí com a receita na mão direto à ótica.
Eu era uma menina de oito anos, e nunca esqueci o espanto de desvendar as copas das árvores. As massas verdes compactas, desfocadas, na verdade, reuniam múltiplos delicados desenhos, as folhas possuíam uma a uma contornos, tons em contraste, e eu não sabia. Ao término do Ensino Fundamental, por um período, auxiliei uma colega de turma nas tarefas. Ela sofria de uma doença degenerativa da visão. Sobre isso me restrinjo a resgatar a imagem dela sorrindo, seu olhar oscilando no infinito, incapaz de perceber em meu rosto lágrimas silenciosas.
O meu coração passou a bater atrás das lentes, igual à canção do Herbert Vianna. Adulta, fase quando o grau estaciona, decidi dar o adeus definitivo à miopia. Curioso foi prosseguir – somente por força do hábito – apertando os olhos, marca registrada dos míopes. Também, em muitas ocasiões, tentei, com o dedo pressionado na parte externa da pálpebra, ajustar a película gelatinosa inexistente, após dela ter me livrado. Em outras, pus a ponta do indicador no meio das sobrancelhas corrigindo no alto do nariz a posição de uma armação fantasma. Alguns costumes dispensam justificativa. Ou podem ser premonitórios. Não calculei o retorno dos óculos no futuro convertido em presente, quando comecei a afastar o livro para entender as letras miúdas. Talvez, de certas coisas não haja modo de fugir. Tudo bem. Só me lembro da presbiopia na hora da leitura. E essa é sempre para mim uma hora feliz. Ao menos, voltei a cantar a composição dos Paralamas do Sucesso como eu o fazia na adolescência.
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