Logo O POVO+
Como neve ao sol
Foto de Marília Lovatel
clique para exibir bio do colunista

Marília Lovatel é escritora, cursou letras na Uece e é mestre em literatura pela UFC. É professora de pós-graduação em escrita literária e redatora publicitária. Tem livros publicados por diversas editoras, entre elas, Scipione, Moderna, EDR, Armazém da Cultura e Aliás. Vários dos seus 12 títulos são adotados em escolas de todo o país, tendo integrado 2 vezes o Catálogo de Bolonha, 2 vezes o PNLD Literário e sido finalista do Prêmio Jabuti 2017.

Como neve ao sol

"Dá-me a esperança, só isso agora importa para mim"
Tipo Crônica
Nico Fidenco foi um cantor italiano e compositor de trilhas sonoras de filmes. Ele ganhou considerável popularidade a partir da década de 1960 (Foto: Tullio Piacentini / Federico Zanni / Wikimedia Commons)
Foto: Tullio Piacentini / Federico Zanni / Wikimedia Commons Nico Fidenco foi um cantor italiano e compositor de trilhas sonoras de filmes. Ele ganhou considerável popularidade a partir da década de 1960

.

A música é “Zingara”, o intérprete, Nico Fidenco. Mas não é a voz do cantor de “A Casa d’Irene” e “Legata A Un Granello Di Sabbia”, sucessos absolutos da década de 1960, que ouço, quando ando pelo corredor e um murmúrio foge da porta do quarto. De fones, minha mãe, aos 90, extrai o passado do tablet. Em italiano, ela pede que a cigana lhe tome a mão e leia seu destino, fale do amor que já não lhe pertence.

Eu me conecto de imediato àquelas palavras, embora não domine o idioma tão familiar ao ouvido. Não preciso ser fluente para compreender e sentir a emoção. “Seu pai achava essa música muito bonita”, ela diz num sorriso manso ao me ver sob o portal. Era raro a papai emitir tais elogios. Na educação estoica que ele recebeu não couberam a dança nem o canto, mesmo assim, a sensibilidade encontrou um modo para se fixar em sua pele. E ele não pôde ficar indiferente às criações românticas, expressas na língua de seus ancestrais. “Como neve ao sol, o amor vai se dissolver”, a lembrança efêmera dura o tempo da composição e se esvai.

Correspondo ao sorriso, e as minhas recordações têm gosto de pizza, nas noites do anúncio solene de um “jantar fora”. Ainda que ocupássemos mesa em pizzaria, de conta gentil ao bolso, a notícia sempre gerava em nós pequena euforia. Uma história de amor vista por olhos filiais é menos banal e mais perfeita que a realidade – à lente do real nenhuma perfeição resiste.

Em uma vida compartilhada, somam-se imperfeições, disso se constitui a nossa humanidade. A despeito do que não tenha sido ideal, houve minutos breves como os de uma canção, que fizeram valer tudo. Após uns cinquenta anos decorridos desde o comentário elogioso à performance musical, uma chama teima em queimar, acende o sentimento, se traduz no último verso, temperado de saudade: “Dá-me a esperança, só isso agora importa para mim.”

 

Foto do Marília Lovatel

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?