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Ao futuro pela Santos Dumont
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Marília Lovatel é escritora, cursou letras na Uece e é mestre em literatura pela UFC. É professora de pós-graduação em escrita literária e redatora publicitária. Tem livros publicados por diversas editoras, entre elas, Scipione, Moderna, EDR, Armazém da Cultura e Aliás. Vários dos seus 12 títulos são adotados em escolas de todo o país, tendo integrado 2 vezes o Catálogo de Bolonha, 2 vezes o PNLD Literário e sido finalista do Prêmio Jabuti 2017.

Ao futuro pela Santos Dumont

Lotado de juventude, o coletivo ia reto naquela direção do futuro – mas não até à praia –, o motorista virava antes, na rua do passado onde descia Jeane.
Tipo Crônica
Avenida Santos Dummont e as memórias do tempo de adolescência em busca de liberdade  (Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves Avenida Santos Dummont e as memórias do tempo de adolescência em busca de liberdade

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“A linha era Centro – Aldeota”, me diz Jeane, entre risos. Ela é dessas profissionais que nos atendem como se reencontrassem uma velha amiga para recordar histórias da infância ou da adolescência. O assunto é o ônibus em que ela percorria a Avenida Santos Dumont. Aos 12 anos, ela e as colegas do Instituto Monsenhor Luis Rocha, escola de freiras, na Rua J da Penha, lá pelas 12h, 12h30, atravessavam a Praça do Colégio Militar em direção à parada da Santos Dumont.

A volta para casa, após a manhã de estudos, não se comparava com a ida, às 6h30, horário em que o movimento das marchas, reduções e pisadas no acelerador aumentava o entorpecimento nos rostos sonados, elas se acomodavam logo nos bancos, ninguém reparava em ninguém. Às 7h, já estavam rezando diante da capela, e depois, às 7h30, seguiam para as salas de aula. Um rigor perceptível no uniforme de saia plissada à altura dos joelhos e blusa de percal em que se aplicava o emblema. “Dava para aproveitá-lo em outros uniformes, na mudança das séries”, Jeane me explica, enquanto relembra a austeridade que a Diretora Lili impunha desde a visão do seu fusca amarelo, estacionado na frente do Instituto, entidade exclusiva para garotas, anacronismo de causar estranheza em um mundo de turmas mistas.

Mas, no fim do turno, tomar o ônibus trazia a chance para se provar o gosto do crescimento e da liberdade. Por isso, nem sempre interessava pegar o primeiro da linha Centro – Aldeota. Às vezes, elas subiam no segundo ou no terceiro apenas para dividir por mais tempo a calçada com os garotos do Militar. Nos antebraços delas, pesavam os livros carregados meio lateralmente, porque assim ditou a moda, que deixava marcas – e que eu mesma conheci muito bem.

Uma vez dentro do veículo, não competiam pelos assentos, como no início do dia. Ficavam de pé. Era hora de se ver e serem vistas. E porque estar de pé facilitava as descidas repentinas, resolvidas no impulso do “Vamos descer no Center Um? Vamos!”, já puxando a cordinha e descendo. Valia o atraso do almoço para passear no primeiro shopping da cidade, daí se chamar “Um”, e usar o troco da merenda no pretexto de comprar bijuterias. Não interromper o trajeto também tinha a sua graça.

Depois de receber os alunos fardados do Militar, cabelos impecavelmente aparados debaixo das boinas, o ônibus freava na parada do General Osório. Ali, a rebeldia dos penteados parafinados fazia o contraste com as fardas. Mais adiante, entravam os atletas do Batista e, à altura do BNB Clube, próximo às piscinas do Condomínio Parque Santos Dumont, aguardava, “brincando de tomar sol, a galera descolada do Geo Studio”, ela enfatiza, acrescentando que, por último, subiam os alunos do Integral. Lotado de juventude, o coletivo ia reto naquela direção do futuro – mas não até à praia –, o motorista virava antes, na rua do passado onde descia Jeane.

Foto do Marília Lovatel

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