Marília Lovatel é escritora, cursou letras na Uece e é mestre em literatura pela UFC. É professora de pós-graduação em escrita literária e redatora publicitária. Tem livros publicados por diversas editoras, entre elas, Scipione, Moderna, EDR, Armazém da Cultura e Aliás. Vários dos seus 12 títulos são adotados em escolas de todo o país, tendo integrado 2 vezes o Catálogo de Bolonha, 2 vezes o PNLD Literário e sido finalista do Prêmio Jabuti 2017.
Essas situações nos roubam tempo e melhor seria não contar com os empurrõezinhos para os tropeços digitais.
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É irritante receber ajuda em três circunstâncias: quando o auxílio é excessivo, se o amparo é dispensável e se a intromissão chega a ser insistente. Imagine que, ao pisar o asfalto, o pé mal desceu da pedra do meio-fio, alguém segure o seu braço e atravesse você à força ou imponha uma direção diversa ao seu planejamento. Ou que, ao alcançar o controle remoto para, por exemplo, mudar de canal, esse alguém, adivinhando a intenção do gesto, desligue a TV. Pior fica se o tal alguém se antecipa num comunicado.
Você vai falar, se prepara, organiza o pensamento, em fração de segundos, e, antes de terminar a construção das frases, a inconveniente mão invisível se atreve a completá-las, a concluí-las, ao próprio modo, e, desconsiderando a sua opinião, escreve na sua frente, dentro do retângulo da mensagem, verdadeiros absurdos que você não digitou e nunca pretendeu dizer. Troca singular por plural, feminino por masculino, põe salmonela no ovo em vez de sal.
Agorinha, o masc de masculino virou máscara e me obrigou a apagar as letras e repetir a palavra. Deve existir a maneira – confesso o meu desconhecimento – de desabilitar o corretor do WhatsApp e do bloco de notas, no qual eu rascunho este texto. Meu reino por uma forma simples, prática, um apertar de “X” qualquer, significando “não me corrija, não escreva por mim”. Isso evitaria constrangimentos e pedidos de desculpa, no caso de se descobrir tarde demais o envio da mensagem adulterada. Essas situações nos roubam tempo e melhor seria não contar com os empurrõezinhos para os tropeços digitais.
Enquanto ocupo meu tempo e o do leitor com um assunto de aparência irrelevante, no protesto contra as pseudocomodidades dos aplicativos de agilidade desastrada, lembro-me da página aberta do livro lido, eu com 17 anos. A crônica que desejei ter escrito, sobre a velha máquina de escrever, tão fiel e dócil às vontades humanas, objeto de estimação que, involuntariamente, no enfraquecimento das hastes tão exigidas, perdidos o cedilha e o til, colocava a narradora na maca quando ela queria uma maçã.
Cometia alterações sutis, economias amigáveis, marcas de pura intimidade com o interlocutor, preservada a compreensão do sentido. Talvez automatismo, frieza e indiferença justifiquem minhas reservas ao entusiasmo pela Inteligência Artificial, do ChatGPT à modalidade mais básica como essa de que me queixo. Ainda acredito na decisão pessoal, na criatividade genuína, no livre-arbítrio. E em algo que livre o árbitro desse corretor.
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