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Cadeira de palhinha
Foto de Marília Lovatel
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Marília Lovatel é escritora, cursou letras na Uece e é mestre em literatura pela UFC. É professora de pós-graduação em escrita literária e redatora publicitária. Tem livros publicados por diversas editoras, entre elas, Scipione, Moderna, EDR, Armazém da Cultura e Aliás. Vários dos seus 12 títulos são adotados em escolas de todo o país, tendo integrado 2 vezes o Catálogo de Bolonha, 2 vezes o PNLD Literário e sido finalista do Prêmio Jabuti 2017.

Cadeira de palhinha

Sim, leio em vários lugares, onde me convier, ainda assim dispor de uma poltrona de leitura aquece o coração. E o coração tem as suas próprias razões, sabemos.
Tipo Notícia
Livro à janela à espera de leitores (Foto: Ioann-Mark Kuznietsov/Unsplash)
Foto: Ioann-Mark Kuznietsov/Unsplash Livro à janela à espera de leitores

 

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Na última aquisição para o mobiliário de Guaramiranga, pude confirmar que não sou uma pessoa movida por motivos racionais ou práticos. Digo confirmar porque disso sempre desconfiei. Eu buscava uma poltrona de leitura. Comecei com as possibilidades das lojas especializadas e naquelas com departamento de móveis.

E, como se o meu interesse abrisse um portal, surgiram vitrines com cadeiras a cada esquina, as quais eu nunca havia notado, não tinha lhes dedicado a menor atenção antes. De novo a sensação experimentada na gravidez, quando passamos a ver um número incontável de barrigões e o universo parece engravidar também, apresentando em toda a parte artigos para bebês ou úteis na gestação – não sei se acontece com todo mundo. Sem falar na previsibilidade dos algoritmos perseguidores, após uma pesquisa virtual.

Porém, meu desejo talvez fosse um tanto exigente: longilínea, discreta, a inclinação suave para proteger a coluna nas horas de mergulho nas páginas, imperceptíveis aos leitores, a largura compatível com o espaço entre o sofá e a varanda, e só esse requisito tamanho reduzia as opções no mar de ofertas. Logo percebi que, se temos algo muito específico em mente, nada nos contenta, procuramos uma agulha no palheiro até achar. E foi justo lá onde eu encontrei: no palheiro.

Zapeando pela internet, surgiu, ante os meus olhos, o modelo perfeito. Estrutura de madeira, as dimensões exatas, o estofado revestido na cor verde que combinava com a minha sala, mas mudei de ideia em relação ao achado depois de clicar na janela “escolha o material”. Então a lindeza reinou absoluta na tela.

Quem está me julgando e pergunta por que tanta importância dada a uma simples poltrona – pode-se ler em qualquer canto – não deve ser um apaixonado por livros. Esses, não duvido nem por um segundo, me compreendem. Sim, leio em vários lugares, onde me convier, ainda assim dispor de uma poltrona de leitura aquece o coração. E o coração tem as suas próprias razões, sabemos.

A palhinha não é tão confortável quanto um estofado, é mais frágil, entretanto conversa com afetos fundos, reminiscências íntimas, de origem longínqua, às vezes, inconscientes, heranças genéticas, familiares, ramificadas nos galhos das árvores genealógicas. Olhei para ela, vi a mim mesma e as gerações antes de mim. Fim da procura. Um reencontro. Como não a reconhecer, não a devolver à sala da minha casa?

Foto do Marília Lovatel

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