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O relógio
Foto de Marília Lovatel
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Marília Lovatel é escritora, cursou letras na Uece e é mestre em literatura pela UFC. É professora de pós-graduação em escrita literária e redatora publicitária. Tem livros publicados por diversas editoras, entre elas, Scipione, Moderna, EDR, Armazém da Cultura e Aliás. Vários dos seus 12 títulos são adotados em escolas de todo o país, tendo integrado 2 vezes o Catálogo de Bolonha, 2 vezes o PNLD Literário e sido finalista do Prêmio Jabuti 2017.

O relógio

E a peça vintage me fez lembrar os relógios de pulso aposentados na gaveta, com o advento do smartphone e a exatidão do horário disponível ao mais leve toque na tela.
Tipo Crônica
Modelo vintage de relógio (Foto: Adobe Stock)
Foto: Adobe Stock Modelo vintage de relógio

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Encontrei-o à venda ao lado da mesa em que tomávamos café da manhã. Pão na chapa com manteiga, o espresso duplo, a gentileza do atendente. Ao nosso redor, pontos comerciais de todos os tipos, boxes com roupas, brinquedos, lanchonetes. Ainda não era uma loja, atrás da porta estreita por onde a moça saía e entrava, guardando os artigos ensacados, começando a organizar a mercadoria nos expositores.

Não resisti à curiosidade e perguntei se podia olhar as opções, e o sorriso dela reconheceu em mim a provável primeira cliente. Aí me lembrei da queixa de mamãe sobre a sua necessidade atual de ter um relógio de mesa, à pilha ou à corda, um que não falhasse, após as oscilações na rede elétrica – suficientes para desarrumar os algarismos acesos – ou em uma falta de energia, num apagão.

O modelo que achei era uma reprodução de um despertador, daqueles com duas cúpulas, um par de pequenos cloches, acoplado ao mostrador redondo, analógico, com os ponteiros das horas, minutos e segundos dando as suas respectivas voltas, cada um no seu ritmo.

A campainha, um martelinho entre as cúpulas, pronto para se movimentar de um lado a outro, fazendo-as vibrar conforme fosse determinado. No melhor estilo retrô, made in China, fez brilhar os olhos daquela que recebeu a imitação do passado para acompanhar o presente. E a peça vintage me fez lembrar os relógios de pulso aposentados na gaveta, com o advento do smartphone e a exatidão do horário disponível ao mais leve toque na tela.

Atentei também para os relógios de parede dos quais não consigo me desfazer, ainda que não funcionem há muitos anos. Um está na cozinha para nos confundir com marcações aleatórias, diz a quem se arrisca a consultá-lo que é de noite estando de dia, quando não faz o contrário. O outro se destaca na estante, junto dos meus livros.

Assim o descrevi em um conto: “A caixa de madeira trabalhada possuía entalhes e uma portinhola de vidro jateado que permitia ver o incessante movimento do pêndulo metálico para lá e para cá. O relógio acompanhou o crescimento das filhas, a chegada dos netos, os intervalos para tomar os remédios, as horas de companhia e de solidão. Tornou-se um organismo vivo.”

Talvez percebê-lo desse modo ajude a explicar a minha insistência em mantê-lo, a humana razão para que conservemos a posse de um objeto sem utilidade. Contudo, revestido de sentimento, atemporal.

Foto do Marília Lovatel

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