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A democracia liberal e o esvaziamento do direito de autodeterminação e soberania dos povos
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É mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutorado em Direito pela Johann Wolfgang Goethe-Universität Frankfurt am Main. Atualmente é professor da Universidade de Fortaleza (Unifor) e Procurador do Município de Fortaleza

A democracia liberal e o esvaziamento do direito de autodeterminação e soberania dos povos

As manobras militares unilaterais dos Estados Unidos em torno do território venezuelano, acompanhadas por retórica de pressão política e ameaça velada de intervenção, seguem ignoradas por organismos como a União Europeia e a OEA
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O navio de guerra dos Estados Unidos USS Gravely, que chegou a Trinidad e Tobago, no Caribe (Foto: MARTIN BERNETTI / AFP
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Foto: MARTIN BERNETTI / AFP O navio de guerra dos Estados Unidos USS Gravely, que chegou a Trinidad e Tobago, no Caribe

O tratamento dispensado à Venezuela nos episódios recentes evidencia, mais uma vez, toda a miséria do padrão duplo que marca a atuação da democracia liberal ocidental no campo do direito internacional. Enquanto discursos oficiais proclamam fidelidade incondicional à soberania dos povos, à legalidade multilateral e ao princípio da autodeterminação, a prática concreta revela seletividade política e condescendência com ações que violam frontalmente esses mesmos valores quando os interesses estratégicos de potências centrais estão em jogo.

As manobras militares unilaterais realizadas pelos Estados Unidos em torno do território venezuelano, acompanhadas por retórica de pressão política e ameaça velada de intervenção, receberam reação praticamente inexistente por parte de organismos como a União Europeia e a Organização dos Estados Americanos.

Esse silêncio contrasta com o discurso de "defesa da democracia" frequentemente mobilizado contra governos que desagradam Washington. Não se trata de mera omissão diplomática: é cumplicidade institucional com a normalização de práticas incompatíveis com o sistema internacional de proteção da soberania estatal.

A contradição torna-se ainda mais grave diante dos próprios dados produzidos pelas Nações Unidas. Relatórios recentes não atribuem à Venezuela responsabilidade relevante quanto ao tráfico de drogas para os Estados Unidos. Ao contrário, os documentos reiteram a necessidade de respeito à integridade territorial e à soberania do Estado venezuelano, reafirmando princípios consagrados na Carta da ONU. Ainda assim, tais constatações são solenemente ignoradas por uma comunidade internacional que prefere alinhar-se à lógica de pressão geopolítica do que ao cumprimento das normas jurídicas que ela mesma instituiu.

O resultado desse comportamento é a corrosão profunda da credibilidade do direito internacional. Quando os princípios da autodeterminação e da não intervenção são aplicados apenas contra Estados periféricos e flexibilizados em benefício das potências hegemônicas, o sistema jurídico internacional deixa de ser universal e passa a operar como instrumento político assimétrico. O discurso normativo perde autoridade, e o direito transforma-se em retórica utilitária a serviço da força.

O caso venezuelano ilustra, portanto, a crise estrutural da legalidade internacional: não se trata de insuficiência normativa, mas de seletividade na sua aplicação. Enquanto o respeito ao direito depender da conveniência estratégica das grandes potências, a promessa de uma ordem jurídica global baseada na igualdade soberana dos Estados permanecerá vazia.

A democracia liberal, que se apresenta como modelo universal de legitimidade, revela sua face mais contraditória: defende a legalidade quando lhe serve, mas a relativiza quando se converte em obstáculo aos seus próprios interesses.

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