
Líder classista, empresário do setor de farmácias, é diretor da Confederação Nacional do Comércio (CNC) desde 2018
Líder classista, empresário do setor de farmácias, é diretor da Confederação Nacional do Comércio (CNC) desde 2018
Era uma vez um país que tratava a saúde como um valor sagrado. Onde o cuidado com a vida passava, antes de tudo, pelo saber. E onde o acesso ao medicamento não era apenas uma questão de preço, mas de consciência. Hoje, esse país se vê diante de uma encruzilhada perigosa: transformar medicamentos em produtos de prateleira, jogando-os nas gôndolas dos supermercados como se fossem sabão em pó ou pacotes de biscoito.
Está em discussão no Congresso o Projeto de Lei 2.158/2023, que propõe a venda de medicamentos isentos de prescrição – os chamados MIPs – em supermercados e marketplaces. À primeira vista, soa como avanço: maior acesso, preços mais baixos, menos filas no SUS. Mas a realidade, como quase sempre, é mais complexa do que a propaganda.
O que está em jogo não é apenas um novo canal de vendas. É a banalização do cuidado. É a autorização para que qualquer esquina – uma loja de conveniência, um mercadinho, até uma barraca na feira – possa, por vias tortas, comercializar medicamentos. E sem a presença de um farmacêutico, esse profissional que, diariamente, orienta, acolhe e evita tragédias silenciosas.
A promessa de reduzir preços repete um argumento da década de 1990, quando uma medida semelhante foi revogada justamente por falta de controle. Hoje, temos a CMED regulando os preços e um mercado altamente competitivo. A equação econômica não fecha. E a social, muito menos.
As pequenas farmácias, especialmente no Norte e no Nordeste, sobrevivem em contextos frágeis. Elas são, para milhares de brasileiros, o único ponto de atenção à saúde em comunidades distantes. Retirar delas 19% da sua receita – que vem dos MIPs – é condená-las ao fechamento. E, com elas, se apaga a luz do único espaço onde há um profissional capacitado para orientar o uso racional do medicamento.
A presença física do farmacêutico é mais do que exigência técnica: é escudo contra a automedicação, contra o erro, contra o risco invisível. E não se trata de elitismo. Trata-se de reconhecer que, em um país com quase 30% de analfabetismo funcional, não se pode presumir que todos compreendem bulas ou alertas sanitários. Sem mediação, o que parece acesso pode se transformar em armadilha.
E mais: a venda em canais pouco preparados pode abrir portas à falsificação, ao desvio de cargas roubadas, ao armazenamento inadequado que compromete a eficácia e a segurança do produto.
Falo aqui como farmacêutico com décadas de atuação no setor, como empresário que vê de perto a luta diária dos que fazem da farmácia não só um negócio, mas uma extensão da saúde pública. Como cidadão que acredita que o remédio certo, na hora certa, pode salvar vidas – e que o uso errado, fora de controle, pode destruí-las.
Sim, queremos acesso. Mas com responsabilidade. Sim, queremos preços justos. Mas com ética. E sim, queremos desafogar o SUS. Mas não às custas de agravar a saúde pública com intoxicações, interações medicamentosas indevidas e agravamentos evitáveis.
O medicamento não é um produto qualquer. É ciência, é risco e é vida. Transformá-lo em mercadoria comum é retroceder décadas de política pública, é ferir o pacto civilizatório que colocava a saúde como um direito – e não como uma barganha de mercado.
Não é de gôndolas que o Brasil precisa. É de consciência.
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