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O Palácio dos Espelhos
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Líder classista, empresário do setor de farmácias, é diretor da Confederação Nacional do Comércio (CNC) desde 2018

O Palácio dos Espelhos

O voto, se for apenas aplauso ao espetáculo, torna-se vazio. Precisa ser compromisso, contrato de execução, aposta consciente naquilo que ultrapassa o reflexo e toca a realidade
Nicolau Maquiavel (Foto: Reprodução Wikipédia)
Foto: Reprodução Wikipédia Nicolau Maquiavel

Há conversas que nos surpreendem pela profundidade com que iluminam a vida. Recentemente, numa dessas noites em que o cotidiano abre espaço para a reflexão, dialoguei com minha filha Sarah, estudante de Relações Internacionais na PUC. Trazia em mãos O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, tema de estudo em sua disciplina. Entre perguntas e observações, percebi como um livro escrito no século XVI ainda é capaz de lançar luz sobre o palco político do Brasil de hoje.

Maquiavel ensina que ao governante não é necessário possuir de fato todas as virtudes, mas é imprescindível parecer tê-las. Deve soar piedoso, justo, íntegro, humano, religioso ainda que, nos bastidores, seja capaz de agir no sentido oposto quando as circunstâncias exigirem. É nesse paradoxo entre o ser e o parecer que se constrói o jogo do poder. E como não reconhecer esse retrato em nosso tempo? Quantos líderes erguem a voz em discursos carregados de moralidade, mas deixam esvaziados os corredores dos hospitais, as salas de aula e os transportes que deveriam servir à população?

Enquanto falávamos, uma imagem se formou em minha mente: a de um palácio feito de espelhos. Nele, cada gesto do governante se multiplica em reflexos cintilantes, todos cuidadosamente produzidos para agradar ao olhar. Mas espelhos não têm profundidade mostram apenas a superfície, ocultando o que se esconde atrás. Assim se dá a política quando reduzida ao espetáculo: hashtags engenhosas, campanhas publicitárias, indignações de ocasião. Um teatro de imagens onde a encenação substitui a substância.

Sarah, atenta, lançou a pergunta que ressoa como provocação necessária: E nós, como sociedade, não somos cúmplices quando nos contentamos apenas com a aparência?. A interrogação ficou suspensa no ar como um espelho diante de nós. Porque, sim, somos. Ao julgarmos mais pelo que vemos nas telas do que pelo que sentimos no cotidiano, ajudamos a perpetuar o ciclo em que a forma suplanta o conteúdo.

O desafio, portanto, não é apenas dos que governam, mas também dos que escolhem. O voto, se for apenas aplauso ao espetáculo, torna-se vazio. Precisa ser compromisso, contrato de execução, aposta consciente naquilo que ultrapassa o reflexo e toca a realidade.

Ao encerrar nossa conversa, compreendi que a lição de Maquiavel permanece atual não apenas porque descreve o poder, mas porque desnuda nossas escolhas. O espelho fascina, mas não transforma. É preciso atravessar sua superfície para encontrar a verdade do caráter, que se revela não no discurso, mas no gesto, não na encenação, mas na ação assertiva.

Que saibamos, como cidadãos, olhar além do brilho que ilude, escolhendo não o reflexo que agrada, mas a essência que constrói.

Foto do Maurício Filizola

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