
Neila Fontenele é editora-chefe e colunista do caderno Ciência & Saúde do O POVO. A jornalista também comanda um programa na rádio O POVO CBN, que vai ao ar durante os sábados e também leva o nome do caderno
Neila Fontenele é editora-chefe e colunista do caderno Ciência & Saúde do O POVO. A jornalista também comanda um programa na rádio O POVO CBN, que vai ao ar durante os sábados e também leva o nome do caderno
Álvaro Vieira Pinto, filósofo e matemático brasileiro, escreveu "O Conceito de tecnologia", em meados dos anos 1970. São dois volumes, imprescindíveis para entendermos o alcance desse conceito no percurso do humano. Para o autor, diferentemente do que pode ser argumentado na atualidade, a partir do envolvimento tecnológico que nos cobre, tal qual uma segunda pele, a criação tecnológica não é o motor da história, este continua sendo o ser humano. São escolhas de seres humanos, adultos, que podem interferir em relação ao convívio com aparatos tecnológicos.
A palavra covardia não exige grandes explicações, pode ser entendida sem exigência de letramento. A covardia é caracterizada pela ausência de coragem, assim como pela falta de ousadia.
O uso desmedido de dispositivos tecnológicos, mais precisamente com a interface das telas, e a covardia estão juntos aqui sob a perspectiva de reflexos em crianças e adolescentes. Há certamente reflexos positivos na interação crianças-tela, mas ressalto as situações pelas quais estão submetidas as crianças, a exemplo, com a função de babás-telas, que ilustra claramente o que significa a covardia, porque as crianças não dispõem de mecanismos de defesa psíquicos para lidar com a profusão de telas, luzes, movimentos, em imagens que, muitas vezes que não encontram "tradução" satisfatória em seu imaginário, por insuficiência do campo simbólico. E se elas têm esse acesso é por anuência do adulto, que também não consegue se desvencilhar do aparato tecnológico, pelas mais diversas razões, cujos comentários ficarão para outro momento.
A relação entre pais (os que exercem essas funções) e filhos pode estar na raiz de possíveis complicações que as crianças vêm apresentando em termos de respostas aos estímulos recebidos. As queixas dos pais em relação a seus filhos são muitas, desde crises de ansiedade, interrupção do sono, ausência ou deficiência em processos de socialização, déficit de linguagem, déficit no aprendizado, déficit de atenção, depressão, violência contra o próprio corpo e contra outras crianças, dentre outras situações, muitas delas, inclusive, não seriam novidade em relação a outras gerações de pais e filhos, mas na atualidade encontram relevância, uma vez que o foco é a patologização.
Por que os pais estão adotando as telas para entreter, silenciar ou mesmo "domar" as crianças? Talvez não tenham outra saída, mas essa escolha tem uma consequência grave: a paralisia na criança pode ser intensa, a tal ponto de ela rechaçar o mundo em seu entorno. O "mundo" aqui se estende a cada outro - semelhante, ou a qualquer situação no campo da existência, seja o contato com a natureza, ou com coisas ligadas a brincadeiras possíveis.
Pior, lampejos de existência desse mundo provocam reações agressivas, violentas, justamente ações que respondem pelo ódio, algo como se a resposta da criança significasse que não lhe resta mais nada. O tom imperativo se fixa e ela vai lutar, com todas as suas forças para manter o objeto em suas mãos; isso porque é o objeto que está na condição dominante. Em breves palavras, essa situação pode favorecer o surgimento de um futuro quadro de adicção. Algo como se houvesse uma disputa, afinal se o adulto pode estar com aquele objeto, por que não a própria criança?
Psicólogos e outros terapeutas, assim como psicanalistas que atendem crianças estão com um vertiginoso crescimento de demandas por tratamento, um reflexo do que parece ser uma pandemia de transtornos, com os quais pais e profissionais de escolas não estão conseguindo dar conta. Crianças estão sendo diagnosticadas de modo mais frequente, com a medicalização em alta; o Brasil já é o segundo país no mundo a medicalizar suas crianças, quadro sistematicamente denunciado pela psicanálise.
A indiferença reina, este que talvez seja o pior afeto contra uma criança, e surge quase como um "acordo tácito": faz de conta que cuido, faz de conta que estou aqui e a criança não sente falta de nada mais, desde que a tela não saia de cena. Este é o aspecto da covardia, pois não há meios de defesa. Os adultos estão diante de um desafio: como controlar seu processo de acesso quase ininterrupto às telas, de modo a não impactar a vida das crianças?
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