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Para trás, há paz?
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Nello Rangel é psicólogo, arte-terapeuta, consultor e um apaixonado pela literatura de Guimarães Rosa

Nello Rangel comportamento

Para trás, há paz?

Como substituir a saudade pelas lembranças que impulsionam a vida e a alegria pelas experiências passadas.
Tipo Análise
Capa Nello Nuno (Foto: ACERVO PESSOAL)
Foto: ACERVO PESSOAL Capa Nello Nuno

 

“Para trás, não há paz”, nos diz Riobaldo, no romance "Grande Sertão: Veredas".

Ele abordava no texto, de uma forma poética, o vácuo angustiante que a saudade traz em si, a falta que se revela diante de algo precioso que se interrompeu, o vazio sem sossego nem descanso, tal como expresso no quadro “A saudade”, pintado por Nello Nuno, meu pai, que ilustra este texto.

Na pintura se destaca um velocípede abandonado, em meio a pinceladas tensas em tons de verde. Ao longe está uma cidade. Num plano intermediário uma planta, em tons de amarelo, parece queimar, impressão essa reforçada por pinceladas vermelhas, naquilo que insinua ser uma sacada ou varanda. Há angústia nos espaços vazios dessa pintura. Ao mesmo tempo, há um lirismo de lembranças de um tempo sagrado da infância.

A saudade surge quando projetos vitais são interrompidos. O que leva a um tipo de paralisação no passado, pela não realização de algo que era vital para o sujeito.

Uma de minhas irmãs tinha uma melhor amiga que era uma das pessoas que ela mais amou na vida. Certo dia ela me contou que sua amiga estava medicada com antidepressivos, para tratar de uma forte dor de cabeça. Disse a ela que esse tratamento era usual para enxaquecas. Mas ao ela dizer que a amiga também tivera uma paralisia em uma das pernas ponderei que seria melhor que voltasse ao neurologista e fizesse uma ressonância ou uma tomografia do crânio, pois esse sintoma estava fora do esperado para enxaquecas e poderia revelar outros problemas.

A amiga adiou por uns quinze dias esse exame. Estava com medo. Um tempo antes um conhecido jogara o tarô para ela e, por duas vezes sucessivas, saíra a carta da morte. O amigo explicou que isso não significava, literalmente, que alguém próximo iria morrer. Indicaria, sim, que ela teria que passar por uma importante provação.

Contudo, com receios, ela adiou os exames por uns 15 dias. Quando finalmente o fez, descobriu um perigoso aneurisma, com sério risco de rompimento. Foi preciso adiar alguns dias a necessária cirurgia, para melhorar um resultado alterado dos exames pre-cirúrgicos. Mas, no dia seguinte, sem que desse tempo para que a medicação fizesse efeito, o aneurisma arrebentou e ela faleceu.

"A diferença entre saudade e lembrança é que, se a saudade tem um vazio irrecuperável, a lembrança se preenche da convivência verdadeira e plena que houve." Nello Rangel

Fiquei muito preocupado com minha irmã. Já tínhamos perdido nosso pai – ela tinha 6 anos então – e agora essa morte terrível. Passei a ligar para ela algumas vezes por dia, para conversarmos. Uns três dias depois, quando liguei perguntando como estava, ela respondeu:

- Agradecendo.

Eu não entendi. E retruquei:

- Agradecendo o quê?

- Agradecendo a Deus. Deus me deu 10 anos de amizade com Dodora. Eu poderia tê-la conhecido, mesmo ela sendo praticamente nossa vizinha. Mas nos conhecemos, fomos sócias, fizemos amizade. E foi tão bom ter sido amiga dela. Ela me ajudou tanto. E sei que eu também ajudei tanto a ela. Deus é muito bom. Me deu uma amizade tão bonita pra viver.

- Gabi, – respondi – você está me dizendo uma coisa muito importante. Pela primeira vez vou agradecer a Deus os 10 anos que Ele me deu com nosso pai. Sempre xinguei os 60 anos que ele me teria roubado. Tenho tanto dele, mesmo me lembrando tão pouco dele. Pela primeira vez vou agradecer a graça de ter convivido com ele por tanto tempo. Ah! Tem mais uma coisa: não te ligo mais não, ok? Se precisar, você me liga. Você está melhor do que eu.

A diferença entre saudade e lembrança é que, se a saudade tem um vazio irrecuperável, a lembrança se preenche da convivência verdadeira e plena que houve. Brincamos entre as duas, ora tendendo mais a uma, ora a outra. Parece-me que minha irmã viveu tão por inteiro as experiências que teve com sua amiga, elas conviveram de maneira tão plena, que ficaram muito mais lembranças do que saudades, muitos mais sentidos do que vazios dolorosos. O amor é farto, faz-se presença e nutre. Mesmo depois da morte da amiga o amor ainda a preenchia, fazendo-a plena de sentido.

Nesse sentido, e de modo diverso ao dito por Riobaldo, é possível ter paz no “para trás”. Ou, nas palavras do próprio Riobaldo: "Deus nos dá pessoas e coisas, para aprendermos a alegria... Depois, retoma coisas e pessoas para ver se já somos capazes da alegria sozinhos... Essa... a alegria que Ele quer."

 

Foto do Nello Rangel

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