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Enevoado
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Nello Rangel é psicólogo, arte-terapeuta, consultor e um apaixonado pela literatura de Guimarães Rosa

Nello Rangel comportamento

Enevoado

Em dias de nuvens mais densas até mesmo a janela do outro lado da rua se esconde em Ouro Preto. O mesmo se dá com o problema do álcool.
Tipo Análise
Aquarela (Foto: Nello Rangel)
Foto: Nello Rangel Aquarela

Depois de ouvir, pela enésima vez, uma pessoa muito querida, em lágrimas e desespero, contar que recaiu no álcool, lembrei-me, mais uma vez, da desesperança absoluta de quem é adicto, traduzida pela impressão de que nunca se ficará livre desse mergulho suicida.

Lembrei-me, também, das palavras escritas por Ruy Castro: “… os alcoólatras têm uma lógica própria. Não se envergonham da doença - só do tratamento.”

Os estudantes da Universidade Federal de Ouro Preto, cidade histórica mineira, ganharam um título em 2012: campeões no consumo de álcool dentre todas as universidades federais do país. Triste condecoração, mas geograficamente perfeita. Ouro Preto, com suas lindas neblinas, é uma metáfora adequada para o alcoolismo.

Em seus dias nublados a cidade se insinua, mas não se revela. Os contornos de suas casas, o perfil das montanhas que a cercam, as torres de tantas igrejas, tudo que não esteja bem perto, ou não é visto ou é somente sugerido. Em dias de nuvens mais densas até mesmo a janela do outro lado da rua se esconde. O mesmo se dá com o problema do álcool.

Perceber os sinais do alcoolismo no amigo muito festivo ou na irmã querida, mas que exagera às vezes, é tarefa sutil. E ainda mais dificultada pela dor que nos invade quando, por entre o enevoado, não conseguimos evitar a triste constatação.

Existem casos dúbios, é verdade. Existe o bebedor pesado que, apesar de ainda não ter plenamente estabelecida em si a dependência química do álcool, já traz em sua vida quase tudo que acontece com o alcoólatra. E para virar de vez um é só uma questão de tempo. Pouco tempo.

A mãe, sentada no banco do pátio, já estava bastante alterada. Como sempre, começou a beber disposta a tomar somente um copo de cerveja. Mas, depois do primeiro copo ela já não é a mesma pessoa. E esse ser que ela se torna não consegue mais parar. Neste momento seu filho se aproxima, exultante com o presente que ganhara de natal. Fala com ela, entusiasmado, mostrando o brinquedo. Sua boca está na altura do ouvido materno. Sua voz é aguda, como a voz de qualquer criança. O que não justifica o tapa que leva na cara.

– Você está gritando no meu ouvido!

A criança se retira, meio tonta, meio chorando. O tio, mortificado, vai atrás. A criança se esconde em uma sala da casa, assenta-se no chão, fica quieta algum tempo. Lembra-se então do brinquedo ainda em suas mãos. Começa a mexer nele. O tio ainda a observa alguns instantes, aliviado. Volta então ao pátio e percebe que a mãe continua bebendo, tranquilamente, nem de longe consciente do que fez. Todos em volta continuam a conversar, naturalmente.

A neblina envolve tudo e todos.

É doloroso se perceber alcoólatra. É doloroso perceber que alguém que a gente ama é alcoólatra.

E é normal gostar de beber. Eu gosto. Mas tentar ponderar se já não se está passando do limite é chato. Afinal, são adultos que sabem o que fazem!

Só que não. Se adultos, pode ser que não saibam. Ou não queiram saber. Ou não possam saber. E quem disse que necessariamente são adultos?

O irmão ficou deprimido quando viu a irmã comemorar pelo Face que a cerveja na praia estava barata. Tantas vezes conversaram. Ela já admitira até que tinha problemas com bebidas, que quando pensava em diversão ou relaxamento sempre pensava em álcool. Inúmeras vezes perdeu o controle e varou madrugadas. Outras tantas nem se lembra do que possa ter acontecido. Algumas vezes dissera que ia cuidar disso. E lá está ela comemorando preço mais em conta.

Os alcoólatras não se envergonham da doença, só do tratamento.

A mãe saí para comprar um antitérmico para a filha de sete anos. E não volta. A filha chora, angustiada. Pergunta pela mãe.

– Cadê Mamãe?! Ela não vem?

Virá. No outro dia, as onze da manhã, muito deprimida, depois de horas de consumo de sabe-se lá o que.
A família conversa e ela admite a dificuldade que tem. Diz que vai tratar, fazer terapia, procurar um psiquiatra. Um amigo psicólogo lhe diz que deveria procurar o AA (Alcoólatras Anônimos), que sem eles suas chances de melhora são minúsculas.

– Acabei de olhar aqui na internet. Tem esse pertinho da sua casa. Tem encontro hoje às 15 horas. Daqui há pouco.

– Mas vou no AA num sábado à tarde!?

– Pois é! Olha que Maravilha! Começar justo no sábado à tarde! É o ideal!

Mas ela se envergonha é do tratamento. E não vai.

A pessoa citada no início deste texto está bons passos à frente. Voltou a frequentar as reuniões do grupo. Está muito triste com a recaída. Como sempre fica. Mas parece cada vez mais próxima de entender que não pode beber. Parece cada vez mais perto de conseguir parar.

O sol lentamente aquece a umidade. A neblina vai se diluindo, como se acrescentássemos água ao leite. O casario colonial parece despertar para o dia já iniciado. A bruma se dispersou. É hora de decidir: abro os olhos e me levanto? Ou cubro a cabeça, viro para o lado e tento dormir?

Foto do Nello Rangel

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