Nello Rangel é psicólogo, arte-terapeuta, consultor e um apaixonado pela literatura de Guimarães Rosa
Nello Rangel é psicólogo, arte-terapeuta, consultor e um apaixonado pela literatura de Guimarães Rosa
– O meu caso não tem jeito.
– ?
– O meu caso não tem solução.
– Como assim?
– Não tem o que fazer comigo.
– Bem, então não sei o que poderemos fazer aqui no meu consultório.
– Como?
– Se você tem tanta certeza de que não há nada que possa ser feito no seu caso, é evidente que não posso ajudar. Você faria qualquer tentativa de melhora fracassar, tanta certeza que tem de que está sem saídas. Todas as possibilidades necessitam da sua participação e, em especial, de sua esperança.
– Mas eu não estaria aqui se não tivesse pelo menos um tiquinho de esperança!
– Ah, bom! Então é diferente… podemos começar a conversar.
Não há como caminhar na terapia sem o perdão. E começa-se com o perdão a si mesmo.
O homem passou quase trinta anos preso. Neste tempo não viu os filhos crescerem, não viu amigos serem enterrados, não viu a esposa. Nesse tempo viu muitos, mas muitos mesmo, dos seus, serem massacrados, colocados à margem de toda e qualquer esperança, destituídos de qualquer graça ou dignidade. Esse homem chamava-se Mandela.
Ao finalmente sair da prisão ele encontra um pais radicalmente cindido. E sangrando abundantemente por essa ferida. Agora está livre. Agora é eleito presidente de seu país.
"Começa assim o perdão. Começa desapegando-se da lamentação e do ressentimento. Sem abrir mão do passado, no sentido de desobrigar-se ao rancor e ao desejo de vingança, não há perdão possível."
Esse homem entra no palácio de governo para seu primeiro dia de trabalho. Estranha que as pessoas estejam encaixotando suas coisas. Pergunta à sua assessora pessoal o que está ocorrendo. Ela lhe explica que eles estão se preparando para ir embora. Serviram ao governo anterior, “dos brancos” e acham que não serão mais aproveitados. Mandela convoca todos para uma reunião. E aí acontece o seguinte:
“O passado ficou para trás, nós olhamos para o futuro agora.”
Começa assim o perdão. Começa desapegando-se da lamentação e do ressentimento. Sem abrir mão do passado, no sentido de desobrigar-se ao rancor e ao desejo de vingança, não há perdão possível. Ou, nas palavras de Riobaldo, “Para trás, não há paz.”
De volta ao filme, um pouco adiante na história a pequena equipe de segurança de Mandela lhe pede reforços. Sabem que muitos querem acabar com ele. Esses reforços chegam. E são os homens da força de segurança do governo anterior. E acontece o seguinte:
– A nação do arco-íris começa aqui. A reconciliação começa aqui.
– Mas há pouco tempo esses caras devem ter tentado me matar.
– Sim, eu sei. O perdão também começa aqui. O perdão liberta a alma. Ele remove o medo. É por isso que é uma arma tão poderosa.
Lembre-se: Esse homem passou trinta anos preso. Esse homem neste tempo não viu os filhos crescerem, não viu amigos serem enterrados, não viu a esposa. Nesse tempo viu muitos, mas muitos mesmo, dos seus serem massacrados, colocados à margem de toda e qualquer esperança, destituídos de qualquer graça ou dignidade. Esse homem chamava-se Mandela e agora é presidente da África do Sul.
"E para ter coragem de caminhar na direção do perdão devo me lembrar que a grandeza também se dá nos pequenos momentos do cotidiano. "
Esse homem existiu mesmo, de se pegar?
Apesar dessa dúvida ser bem razoável pensar que é difícil achar pessoas assim complica as coisas. Essas pessoas são raras? Não sei. Mas sei que se puder imaginar que cada pessoa possa ser assim, quem sabe então não consigo dar alguns belos e preciosos passos? E para ter coragem de caminhar na direção do perdão devo me lembrar que a grandeza também se dá nos pequenos momentos do cotidiano. Se penso somente nos gestos extraordinários não faço o que já está ao alcance de minha mão.
Você já se perdoou hoje? Você já perdoou alguém hoje? Ou, nas palavras de Paulo Mendes Campos:
“Meu filho, se acaso chegares a um mundo injusto e triste, como este em que vivo, faze um filho; para que ele alcance um tempo mais longe e mais puro, e ajude a redimi-lo.”
Vale a pena perdoar. Logo de cara ganho minha soberania de volta. Preso no ódio vivo voltado a quem odeio, foco minha vida no rancor. Perdoando, sinto minha vida de novo nas minhas mãos.
"Perdoar não apaga o que aconteceu. Perdoar não é esquecer, deletar. Isso seria um tipo de amnésia. Perdoar é lembrar sem se ferir. É isso que desamarra, liberta para viver o presente."
No romance “Grande Sertão: Veredas” Joca Ramiro, um líder admirado e justo, é morto justo por ter perdoado o adversário, Zé Bebelo. E o filho de Joca Ramiro, Diadorim, tomado de ódio pela morte do pai, orienta sua vida pela vingança. E morre por não perdoar.
Segundo a filósofa Hanna Arendt a existência humana é marcada pela imutabilidade do passado e pela imprevisibilidade do futuro. Para lidar com a primeira o melhor que se dispõe é o perdão. Para lidar com o segundo o melhor que se dispõe é a promessa, feita e cumprida.
Perdoar não apaga o que aconteceu. Perdoar não é esquecer, deletar. Isso seria um tipo de amnésia. Perdoar é lembrar sem se ferir. É isso que desamarra, liberta para viver o presente. Frente às ofensas e violências sofridas, o perdão é o contrário da vingança, a qual nos mantém acorrentados ao sofrido, por mais que alguns pensem que serão libertos depois de vingados. O perdão é uma alternativa à punição e não seu oposto. Perdoar não significa apagar o efeito do que foi feito, mas é “a manifestação do poder de iniciar um novo processo”.
"Observe que o peso de se perdoar alguém é muito aliviado quando falamos de desobrigar alguém."
Sem o perdão e a promessa ficamos condenados ao isolamento.
Arendt ainda propõe uma tradução alternativa a certos trechos bíblicos que dizem do perdão, o que permite uma outra visão do assunto.
“Se alguém pecar contra ti, deves perdoá-lo”, ficaria, na nova versão, algo como “Se alguém errar contra ti e voltar atrás, sobre os próprios passos, e mudar de direção, deves desobrigá-lo.”
Errar contra ti me parece bem melhor que pecar contra ti. Acaso sou divino para alguém pecar contra mim? Acaso posso condená-lo à danação eterna? Errar contra ti é muito mais humano: me desculpe, errei, cometi uma violência contra você e percebo isso agora. Mudei de direção e não mais o farei.
Observe que o peso de se perdoar alguém é muito aliviado quando falamos de desobrigar alguém. Dizer que perdoo alguém me coloca, automaticamente, numa posição se superioridade em relação a quem vai ser perdoado. Eu tenho o poder de limpar sua alma, pobre infeliz. Essa assimetria de dignidade some quando falo não de perdão, mas de desobrigação. Além disso, desobrigar revela, nesse contexto, com muito mais clareza, o tanto que o perdão-desobrigação liberta e desamarra, pessoas e relações.
A paciente idosa começou a primeira consulta mostrando o velho caderninho, onde estavam anotados décadas de rancores acumulados na relação com o marido. O terapeuta não permite a leitura nem de toda a primeira página. E diz para a paciente que, se eles não puderem dar um fim, jogar fora, botar fogo ou algo semelhante, no caderninho, o tratamento não terá sentido. A paciente fica um tempo em silencio. Resolve. Inclina-se para o lado e joga o caderninho no cesto de lixo. E diz: “Eu fui uma criança feliz.” O terapeuta sorri. E responde: “Que bom. Então não vamos precisar inventar nada. Vamos só tentar recuperar uma criança feliz que já existiu. E que renasce hoje, ao se perdoar.”
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