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A sabedoria não combina nem com a esperteza nem com o rigor
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Nello Rangel é psicólogo, arte-terapeuta, consultor e um apaixonado pela literatura de Guimarães Rosa

Nello Rangel comportamento

A sabedoria não combina nem com a esperteza nem com o rigor

Se tomados pelo excessivo rigor acabamos por perder nossa flexibilidade, humor e graça, que tanto podem nos ensinar e nos aproximar de saber saborear a vida.
Tipo Notícia
Máquina de fazer luar, de Nello Nuno (Foto: Acervo do autor)
Foto: Acervo do autor Máquina de fazer luar, de Nello Nuno

 “Nil sapientiae odiosius acumine nimio”, Sêneca, citado no conto “A Carta Roubada”, de Edgar Alan Poe

 Esta frase sempre foi por nós traduzida como: “Nada é mais odioso à sabedoria que um exagerado rigor.

Mas no livro “A carta roubada e outras histórias de crime & mistério, da editora L&M, tradução de William Lagos, editado em 2003, a mesma frase é traduzida como: “Nada é tão prejudicial à sabedoria como a excessiva sagacidade”.

Esta tradução contém um erro e um acerto. O erro é traduzir odiosius por prejudicial. Em latin, odiosius significa odioso, desagradável, importuno, doloroso, funesto. Fica melhor como estava antes, “Nada é mais odioso `a sabedoria…”.

O acerto é a tradução de acumine por sagacidade. Em latim, acúmen é ponta, aguilhão, penetração ou agudeza de espírito, vivacidade ou sutileza. Por sua vez acúmino é tornar agudo, aguçar. Já nimio é muito, demasiadamente, excessivamente.

Assim, julgo adequada a tradução “Nada é tão odioso à sabedoria como a excessiva sagacidade”. Esta tradução nos permite pensar que sagacidade aqui possa se associar a esperteza, a tentar ser mais esperto que o mais esperto.

Certa vez um amigo, ao estacionar o carro para ir ao teatro, propôs a uma criança que pedia para tomar conta do veículo que se ela conseguisse uma calota igual à que ele tinha perdido lhe daria 20 reais. Ao sair da peça meu amigo vê sua roda com a calota, fica todo feliz, dá o dinheiro ao menino e vai embora para casa. Já em casa, ao dar a volta no veículo para apagar a luz da garagem percebe que a criança havia tirado a calota de um dos lados do próprio carro e passado para o outro lado.

Meu amigo, espertinho demais que queria ser, encontrou um menino bem mais espertinho que ele. Via de regra, os golpes que se tentam por aí, em algum momento, se baseiam em dois pontos: O primeiro é a nossa crença indevida que a nossa sagacidade é maior do que a do outro. O segundo ponto é a nossa cobiça, que será a isca a nos atrair para a arapuca, nos induzindo na sensação que levaremos alguma vantagem da situação.

Já escapei de poucas e boas lembrando-me desses dois pontos.

Por fim, o termo “exagerado rigor”, como era traduzido na frase que inicia esse texto, é interessante, ao associar a frase à seriedade. “Nada é tão odioso à sabedoria como o excessivo rigor” nos permite inferir que a seriedade excessiva nos distancia da sabedoria, aqui entendida menos como conhecimento do que como saber viver com gosto e sabor (Sabedoria, em sua origem latina sapiencia, é a palavra da qual derivam saber e sabor). Assim sendo, se tomados pelo excessivo rigor acabamos por perder nossa flexibilidade, humor e graça, que tanto podem nos ensinar e nos aproximar de saber saborear a vida.

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