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Do que me lembro quando penso em você, pai?  
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Nello Rangel é psicólogo, arte-terapeuta, consultor e um apaixonado pela literatura de Guimarães Rosa

Nello Rangel comportamento

Do que me lembro quando penso em você, pai?  

O valor é a vida. Você não pode esquecer. O valor é a vida. Enquanto pode ele lutou pela vida, lutou para ficar conosco. Agora é com a gente.
Autorretrato de Nello Nuno  (Foto: Acervo do Autor )
Foto: Acervo do Autor Autorretrato de Nello Nuno

 

Escuro.
Cinza.
Olhos fechados, pesados. Escuro.
Abri um pouco, tudo meio cinza.
Preguiça?
Devagar, abro os olhos de novo.
Tudo cinza lá fora. E frio. E aqui está quente.
Só não posso me mexer que acho um pedaço frio de lençol.
Preguiça de levantar e ir para aula.
Tenho aula?
Não.
Hoje é domingo.
Alívio.
Não.
Meu pai morreu ontem.
Hoje é o enterro.
Ai.
Uma pontada.
Vontade de chorar.
Medo.
Tristeza.
Fecho os olhos.
Quieto, tento dormir de novo. Não dá.
Escuro.

A cidade é antiga.
Em seus frequentes dias nublados tudo é cinza.
E acalma.
Ou entristece?
Enevoada, a cidade se insinua. Mas não se revela.
Os contornos de suas casas, o perfil das montanhas que a cercam, as torres de tantas igrejas, tudo que não esteja bem perto, ou não é visto ou é somente sugerido. Em dias de nuvens mais densas até mesmo a janela do outro lado da rua se esconde.

- Mãe! Olha o poema que escrevi!
Foi a primeira vez que escrevi um poema de verdade. O anterior “Razões para amar o meu Brasil” era um dever de moral e cívica, não valia, fui obrigado. Poema, mesmo, esse era o primeiro.
Minha mãe se assustou.
- Você brigou com sua irmã?
- Não.
- Você brigou com algum amigo seu?
- Não!
- Então, por que escreveu isso?
- Uai, deu vontade.
Meu pai e minha mãe eram pintores. Orgulhoso, eu achava que estava virando artista também.
- É... bem... Parabéns. É seu primeiro poema.
E entregou o poema para meu pai ler.
- Você brigou com sua irmã?
- Não!
- Você brigou com algum amigo seu?
- Não!
- Mas por que você escreveu isso?
- Já disse. Deu vontade. Escrevi.
- É? Parabéns, meu filho.
Muitos anos mais tarde minha mãe disse que quando eu me afastei meu pai perguntou:
- Será se sou eu?
- Que isso, Nello! Você tem 35 anos. E nem está doente. Claro que não!

 Escuro

O escuro
é um mundo negro,
é a alma preta,
o que nós não vemos,
é a destruição.
É a alma pesada,
o que significa
que é o fim.
Fim de uma amizade.

Meu pai morreu dois dias depois. Foi passar o fim de semana no sítio com os amigos. Na sexta à noite começou a passar mal. Parecia uma gripe forte. Na manhã seguinte procurou meu avô, médico. Disse que não estava bem. Meu avô viu umas manchas na pele dele. Falou para meu tio achar minha vó. Disse que achava que meu pai não escapava.
Meu pai foi internado de manhã, direto no CTI. Entrou andando.
Morreu de tarde.

Acharam que era botulismo. Ele tinha comido um paté na noite anterior. E ninguém sabia da meningite que, desde 1971, quatro anos antes, vinha se espalhando pelo Brasil.

Ninguém sabia porque o regime militar não deixava ninguém notificar o ministério da saúde ou publicar na imprensa. Meu pai foi internado no Hospital das Clínicas da UFMG. Meu avô era professor da Faculdade de Medicina de lá. E nem ele nem todos os amigos que correram para tentar ajudar, médicos de lá também, sabiam da doença que vinha se espalhando.

Devagarinho.
Há 4 anos.
Os militares achavam que iam falar mal do regime.
Foi meningite.
A galopante.
Aquela que tem muita pressa de matar.

Em Ouro Preto não sabíamos de nada do que estava acontecendo em Belo Horizonte. Ligaram para minha mãe, cedo, avisando que meu pai estava internado e ela foi correndo para o hospital em Belo Horizonte.
Mas não deu tempo de ela chegar.

Ele morreu antes, enquanto ela ainda estava na estrada.
Ela não avisou para nós, filhos, que ia pra BH por causa dele. Não sabíamos de nada. Nem da doença, nem do porquê da viagem dela.

Continuamos brincando a tarde toda enquanto ele morria.

Sem saber de nada.

Mamãe disse depois que, quando ligaram falando com ela que ele estava mal no hospital, ela pensou na hora:
- Meu Deus! Será que o poema era isso mesmo?

 Não sei a partir de quando mamãe começou a me contar esta história. Mas ela repetiu depois, a mesma história, várias vezes. Acho que todo ano ela repetia. Todo ano, enquanto eu crescia e virava adulto, ela me contava a mesma história.

Quando finalmente chegou na porta do hospital onde papai estava internado encontrou o terapeuta que tinha cuidado dela e do papai. Ela entendeu. Papai tinha morrido. O terapeuta deve ter falado muita coisa para ela. Mas ela só me contava essa parte.

Papai, enquanto estava acordado, pedia o tempo todo para os médicos:

- Me segura. Não me deixa ir. Me segura. Não posso ir. Têm os meninos. Tem a Anna. Me segura. Não me deixa ir.

Muita gente deve pensar que, escutando isso, mamãe ia desabar. Mas ela parece que ela não sentiu assim. E repetiu para mim, minha adolescência toda, essa história.

Não sei se falou também com minhas irmãs. Acho que falou desse jeito só para mim. Eu, o filho homem mais velho, que deixou de uma vez só de ser criança quando papai morreu. Acho que ela tinha medo de que eu deprimisse. E repetia a história. E concluía.

- O valor é a vida. Você não pode esquecer. O valor é a vida. Enquanto pode ele lutou pela vida, lutou para ficar conosco. Agora é com a gente.

O terapeuta também tinha falado isso para ela.

E ela repetia.

Muita gente achou errado o terapeuta falar essas coisas para ela justo naquela hora.
Mas eu gostava de escutar essa história.
Me fazia bem.
Pelo menos eu ficava menos triste.
Acho.
Meu pai - ela contou ainda - quando acordou pela última antes de morrer, brincou com vovô:
- É... Acho que vou ter que entregar o ouro para o bandido...
Meu pai morreu brincando.

Gosto de lembrar disso também.

 

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