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"A história de uma aldeia é a história do mundo"
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Formada em medicina pela Universidade Federal do Ceará (UFC), residência médica em Psiquiatria pela Universidade de São Paulo (USP), Título de Especialista em Psiquiatria pela Associação Brasileira de Psiquiatria

"A história de uma aldeia é a história do mundo"

Tudo em sua vida parecia-lhe sem sentido - a faculdade de Direito, o casamento, o trabalho -, exceto as primeiras recordações da infância. A impressão era de que "mais vida havia quanto mais voltava"
Foto: Divulgação "A Morte de Ivan Ilitch" é um dos mais importantes livros de Tolstói

Adoro cafés. Especialmente os pequenos. Entrei. Não havia nenhum outro cliente. Pedi meu expresso e fiquei transitando nos vastos labirintos de meus pensamentos, refletindo sobre a história trágica do livro que tinha em mãos: A morte de Ivan Ilich. Sentia a angústia do personagem. Ivan, juiz de instrução, estava à beira da morte e questionava as escolhas que havia feito durante a vida.

Escolhas, quase sempre, baseadas em interesse e conveniência. "Quanto mais perto do presente, tanto mais insignificantes e duvidosas eram as alegrias."

Tudo em sua vida parecia-lhe sem sentido - a faculdade de Direito, o casamento, o trabalho -, exceto as primeiras recordações da infância. "Quanto mais voltava para trás, mais vida havia." Eis que entram um pai e seu filho, e se sentam numa mesa ao lado. Olho para o menininho e sorrio. Ele começa a mexer nas almofadas. - Está fazendo uma caminha? - perguntei. - Não, um castelo - respondeu.


Senti-me como o amigo do Pequeno Príncipe que não conseguia enxergar o elefante dentro da jiboia. Não via nada além de um chapéu. Apesar da minha inabilidade inicial, cultivamos uma amizade breve e preciosa. Ao ir embora, o menininho pegou uma minúscula florzinha de plástico e me entregou:
- Tchau! É para você. Para você plantar.


Sorri com a boca e com os olhos, emocionada. Guardei-a dentro do livro, onde ainda permanece.
O silêncio voltou a tomar o café. Não durou muito: entrou um casal, não exatamente bem arrumado, mas vestido de modo a ostentar. Sentaram-se e começaram a conversar sobre os móveis da casa nova. Estavam preocupados em não gastar muito, mas queriam escolhas que impressionassem.

A mulher disse ao marido:

- Amor, essa mesa pequena do café, que ficará logo na entrada, será tudo classe A.

Enquanto os ouvia, senti saudades do menininho. Lembrei-me do Verissimo - que partiu há poucos dias -: "Não sei para onde a humanidade caminha. Mas, quando souber, vou para o outro lado."

Ali, diante de mim, num café pequeno, estava a história do mundo.

 

 

Foto do Patrícia de Sá Cavalcante

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