
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
“Quando tempo mais eu vou ter que esperar em frente a esse mar? Morrendo de sede em frente a esse mar?”
Era meados dos anos 2000 em Fortaleza. Quando o dia ficava muito quente, e todo dia era muito quente, a galera ia para praia cantar música baiana. A Cidade rica fervia de dinheiro, no embalo dos anos Lula. O valor dos aluguéis e das propriedades nunca havia sido tão alto. O turismo e a moda cearense nunca estiveram tão na moda. Mas na periferia da cidade nunca foram "tão pretos de tão pobres". Nego Gallo, quando não estava em alto mar trabalhando de funileiro pra ganhar algum, também ia pra beira do mar cantar. E lia e discutia política para entender o porquê tanta desigualdade.
Até que o rap começou a chegar e sua precária tecnologia de fitas. Era a época em que o analógico (o que significa também a riqueza da linguagem, a analogia) estava dando lugar à era digital, a vitória do numerado sobre o letrado. Mas aqui a coisa pegou diferente. Em vez de baianos, eles começaram a cantar as coisas da “4tal”. E aquela realidade beira mar ganhou letra. O racismo, por exemplo.
Nego descobriu que era negro quando a policia chegava na praia. Os brancos eram tratados de um jeito. Os pretos com muito mais porrada. Um dia, a galera da zona Oeste da Cidade, Goiabeiras, Barra do Ceará, Conjunto Ceará se encontrou com a turma do Leste, Mucuripe, Farol, Vicente Pinzon. Nego Gallo conheceu um cara alto, forte, invocado, chamado Gabriel. Começaram a cantar, pensar e zoar juntos. Resolveram fazer o primeiro disco. Nascia o Costa a Costa. E a música, claro, falava da praia e deles mesmo.
Gabriel Linhares se transformou no Don L e Carlos Eduardo em Nego Gallo. Foi a primeira geração de rap cearense com identidade, repertório próprio e coragem de botar a cara pra bater. Don L foi escolhido, em 2022, o melhor artista de São Paulo pela Associação de Críticos de Arte. Um garoto da segunda geração do rap beira mar de Fortaleza, Matuê, bateu Anitta entres as músicas mais acessadas no Spotify. E isso sem robot para ajudar.
Nesta entrevista, Nego Gallo conta a sua história. Ele foi o que os americanos chamariam de Father Founding, o pai fundador do rap beira mar da Cidade. E criou um jeito de enxergar Fortaleza e cantá-la que já entrou para a história. É tão forte que, parafraseando Manuel Bandeira, eu não deveria dizer, mas quando Nego cantarolou a letra do seu primeiro sucesso com Don L, a voz do entrevistado ficou embargada. Tá tudo ali, a verdade pura destes garotos. É como ele diz “a gente se perguntava quanto tempo levaria para que as pessoas notassem que a gente estava ali”. Eles notaram pela música.
História
N: Sou filho de uma cearense, dona Conceição, e de um pernambucano, seu José. Eles se encontram no Rio de Janeiro da década de 1970. Minha mãe acabou indo para o Rio porque a nossa família não tinha condições aqui em Fortaleza. Os anos passaram, ela encontrou meu pai saído de Pernambuco. Os pais dele morreram e ele foi para o Rio com oito anos de idade. Viveu um tempo na rua e, aos 18, entrou nas Forças Armadas e conseguiu uma profissão, mecânico. Nasci lá. Aos 12, vim para Fortaleza. Essa oportunidade de crescer numa cidade perto da praia, ali no bairro Moura Brasil, na comunidade do Oitão Preto… Começa o desenrolar da minha história. Consegui concluir meu nível médio, com muito sacrifício. Com 15 anos, fui trabalhar com meu padrasto fazendo portões de ferro. No mercado formal mesmo, com 16, 17 anos, eu estava nas plataformas de petróleo. Ia trabalhar como ajudante de montador, passava 20 dias no mar. Gostava muito de chegar e ver a cidade. Era época das gangues, as disputas de território aconteciam na praia. Uma vez eu estava assistindo e tinha um rapaz perto, notei que ele estava bem incomodado e perguntei: “Qual foi?”. Ele: “Tanto preto, tanto pobre se matando”. Perguntei porque ele tava falando isso. Ele: “Gente preta e pobre reproduzindo uma violência entre eles mesmos”. Aquilo deu um “start”. Uma semana depois eu estava num grupo de consciência negra aqui do Ceará, que o professor Hilário Ferreira e Alex Ratts faziam parte, me receberam. Sou muito grato. Eles me deram a oportunidade de começar a escrever, de me aproximar de outros horizontes.
Negritude
N: A negritude chegou para mim não pelo rap, mas por músicas como a do Olodum. Achava muito interessante que eles conseguiam cantar elementos históricos. Na sequência, veio o hip-hop. Falava muito a mim pela percepção de ser gente jovem, de periferia, sobre o que vivia e sentia. Percebi: “Isso que quero para minha vida”. Vieram os primeiros grupos de rap. A gente buscava entender o que era isso que se apresentava como movimento. Comecei a desenvolver as primeiras letras meio de brincadeira. Em 2003, ia para uma Rádio Universitária, a Mandacaru FM, no bairro Ellery, e ficava por lá a tarde toda com os amigos, já tentando me aproximar da comunicação. A gente começa a ver mudar em 2004 e 2005, e Recife acaba se tornando um lugar de tecnologia. Essa tecnologia andou pelo Nordeste, para quem estava no hip-hop. O show era na rua, chão, parecido com as batalhas de freestyle hoje, da galera mais nova, só que a gente ia em grupo. O Conjunto Ceará concentrava todo mundo, do MH2O, Movimento do Hip-Hop Organizado, com Johnson Sales. Era muito pedido que a gente se informasse, participasse de grupos para desenvolver ideias. Isso tinha uma corrente clara de esquerda orientando e a questão da negritude presente. Como quase todo jovem de periferia, isso (entendimento sobre ser negro) surgiu para mim com a polícia, quando me chamaram de “negão”. Mandaram eu ir para a parede. Aí eu descobri. Sou negro. Minha mãe queria que eu cantasse samba, ela sempre achou que o rap, por ser muito crítico, me colocava em perigo. E trouxe mesmo alguns problemas, mas a gente se percebeu também num lugar de compor as falas de pessoas que vieram antes, de amigos contemporâneos, e mudar isso. Aprendi, já no começo, que o coletivo é o caminho.
Costa a Costa
N: Conheci o Gabriel (Don L) num desses movimentos organizados. Fomos convidados para a primeira coletânea de rap de Fortaleza. A gente conversava sobre essa Fortaleza que a gente vivia, cada um da sua forma. Ele tava no Serviluz nesse momento. Eu já morava no Morro do Murico. Ele tinha o grupo dele e eu o meu. A gente teve a ideia de juntar os grupos e tentar fazer um disco. Ele representando a galera do Serviluz, do Titanzinho. Eu com minha vivência da Barra do Ceará, do Pirambu. Foi um diálogo bacana. Com muita garra, muito coração. A primeira coletânea desses dois lados da Cidade: “Plano B & Brigada Sonora de Rua: Fortaleza de Costa a Costa”. A galera entendeu que era “Costa a Costa”. A gente para com os dois grupos aqui, porque tem um grupo novo chamado Costa a Costa. E surgiu. Para a gente, trazia um orgulho de se sentir “fazedor” de algo. A gente andava em todos os lugares, via todas as favelas. A gente usava roupas de Fortaleza, não aquela indumentária de São Paulo ou Rio de Janeiro. O primeiro show no Dragão do Mar foi muito bacana para a gente começar a sonhar, de que talvez essa música nos levasse para outros lugares. Na nossa ingenuidade, a gente não percebia onde a gente tava. A gente estava em Fortaleza, no Ceará, no Nordeste do País. E pensar num grupo com cinco pessoas, mais técnicos, ser contratado para ir a São Paulo… A gente não compreendia como uma realidade. Era mero detalhe que seria superado a qualquer momento. Aí veio o segundo disco: “Dinheiro, sexo, drogas e violência de Costa a Costa”. A gente não conseguia escutar nos outros nada que fizesse referência aquilo que a gente sentia. Fomos conhecer Fortaleza mesmo, fazer amizade, descobrir músicos, perceber a riqueza dessa Cidade. A gente não queria reproduzir beats nem temáticas ou ambientes que a gente via reproduzido, porque a gente não se reconhecia muito naquela coisa de Nova Iorque. A gente estava muito mais para essa coisa que o Belchior falava dessa América Latina. E a gente estava cantando em Fortaleza, num País que não levava em consideração a existência desse tipo de música (rap) fora do eixo Rio-São Paulo. Os discos foram muito bem recebidos.
Tudo que a gente fez de música, com o Costa a Costa, foi muito vivido. Era o registro do que era ser jovem em Fortaleza na periferia em 2007. Acho que esse sempre foi um dos motivadores do processo: um registro desse mundo de passagem. Veio a vida. Fui pai, tive meu primeiro filho. Tive essa perspectiva de “não posso sair da Cidade, porque são meus filhos, não posso ir atrás desse sonho em particular”. O Gabriel estava num outro momento da vida e ele busca esse caminho em São Paulo. A gente ficou muito feliz como grupo, porque a gente entendia a potencialidade disso, para além da música. A gente começou a acompanhar o processo do amigo e fomos tocando nossa vida. Trabalhei como auxiliar de enfermagem, me aproximei da área de saúde mental e trabalhei com pessoas em situação de rua. Trabalhei em comunidades como Oitão Preto, espaços com concentrações muito grandes de pessoas. Isso tomou muito da minha vida. Dali, veio muito o que aprendi sobre a vida. Melhorei como pessoa e percebi coisas que não via. Dado momento, comecei a ir a São Paulo acompanhar o Gabriel em alguns trabalhos que ele fazia e eu acabava participando. Estar em São Paulo é uma experiência. É uma cidade que oferece “n” situações para você se perceber. Cada ida e vinda era muito meu papel também, de ir lá, conhecer, aprender, e pensando em Fortaleza. Aqui, quando tinha uns eventos de rap, o pessoal acabava me chamando para abrir. E eu não tinha muito repertório. Fazia freestyle, tinha uma música ou outra gravada e tal. Essa coisa de filho, trabalho… Seguiu diminuindo o espaço da arte na minha vida. Se passaram nove anos. Começamos a construir uma ideia de um disco muito timidamente. Eu morava num bairro chamado Goiabeiras. A gente começou a trabalhar num disco “home studio”, algo simples para o YouTube. Mostrei para o Gabriel. Ele gostou tanto que ele passou um tempo meio sumido e eu “pronto, ele não gostou do disco”. Do nada, ele disse “não, mano, passei um tempo conversando com uns amigos e aí a gente quer produzir o disco”. Me assustei logo de cara. Ele disse “Tamo junto”. Foram oito meses de trabalho. No final, assim, perceber que o disco levava meu nome mas começou a juntar Fortaleza num todo, como um reencontro dessa coisa da arte. A gente tinha um disco que falava da Cidade, num rolê do reggae, que era uma musicalidade muito presente na periferia naquele momento. E tinha algo acontecendo na Cidade que iria estourar. Justamente no dia do lançamento, 2 de fevereiro de 2018, a Cidade virou, com ônibus pegando fogo, atentados, e o disco rolando. As pessoas estavam vivenciando a Cidade e escutando o disco. Algumas começaram a falar “O que tu tá falando está acontecendo, mas a gente não tá com sentimento negativo em torno disso. A gente tá percebendo o que é a Cidade e estar nessa luta de buscar ser feliz em Fortaleza”.
Movimento “4tal”, Bece e novo álbum
N: Tenho consciência sobre o movimento. Isso diz para as pessoas que é possível. A minha percepção de sucesso é a possibilidade de ser produtivo, de estar afinado com a proposta que represente algo mais para mim e para quem está por perto. Na prática, não quer dizer muito, mas alimenta a percepção que estou colaborando com possíveis gerações que vão se ver nesse papel de arte. É um movimento “4tal” (pronuncia “fourtal”, do inglês “quatro”). Tinha isso de cada cidade ter uma sigla. Eu peguei um “4”, escrevi “tal” do lado. Isso marcou. Hoje é roupa, muita gente carrega a hashtag (nas mídias sociais). O desdobramento é ver pessoas como Matuê, o próprio Don L, que é um expoente interessantíssimo dentro desse mundo que é o hip-hop e o rap nacional. Ele pertence a uma classe de poetas que estão há muitos anos tentado fazer uma leitura desse país, sendo corajoso nesses processos de construções artísticas, porque acaba se contrapondo ao mercado. Me divirto muito quando a gente está junto porque, além da amizade, tem a questão da admiração.
O desafio hoje de estar no núcleo de mediação social na Biblioteca Estadual do Ceará (Bece) é desse olhar que recebe das comunidades, passar essa segurança e confiança que a gente quer estar próximo, quer entender os desdobramentos que ela traz agora. Porque mudou, depois da pandemia (da Covid-19)... A gente quer entender e propor caminhos como um primeiro passo na construção de outras referências para pensar a leitura, o livro, junto à comunidade. A gente gestou um programa que vai levar atividades que serão gestadas junto da comunidade, com a aproximação da leitura, do livro, mediando primeiros contatos com essas pessoas que historicamente e geograficamente não estão nesse raio de ação. Na música, a construção do que pode ser um novo álbum vai muito, também, do que o país vai poder apresentar de possibilidade. Quero lembrar a todos a importância do que é ser crítico, de possibilitar que as pessoas sonhem. Estou vindo de uma região em que o chão é árido, o sol tá ali presente lembrando a você o quanto é necessário ser forte para fazer o caminho, para existir. Mas fica mais fácil quando a gente está junto. O coletivo sempre foi a solução para mim. Em outubro (mês de eleições em 2022), a gente tem um compromisso com nosso País.
MAIS UM MILAGRE DOS EXCELENTES MÉDICOS CUBANOS
O biógrafo Fernando Moraes que estava programado para fazer uma palestra nos evento "Diálogos Contemporâneos", passou mal , quando estava trabalhando como um professor de Filosofia em um filme que retrata os episódios da invasão da Maria Antonia (Filosofia da USP) durante a ditadura. Moraes - que tem apenas parte da função pulmonar- foi salvo pela medicina cubana. Ele estava num grupo que foi à Ilha para o lançamento do filme de Oliver Stone sobre Fidel e, mesmo sem apresentar sintomas, os médicos detectaram a Covid.
O PAÍS DO CARNAVAL
Aconteceu no carnaval de 94, acho eu. Confesso que sou um modelo antigo. Era carnaval. Eu aluguei um carro em Paris e fui descendo até Lisboa. Quando cheguei na terra dos alfacinhas, como se chamam os nascidos lá, soube que o embaixador José Aparecido de Oliveira queria falar comigo.
José Aparecido era uma raposa mineira dessas bem felpudas. Foi secretário do Jânio, Ministro da Cultura. Era uma cara adorável. Liguei e a secretária disse que ele estava me convidando para um jantar naquela mesma noite. Fui. Encontrei o Zé Aparecido afundado num sofá de couro numa penumbra. O homem estava deprimido.
— O Itamar se meteu numa grande confusão no Sambódromo, me contou. O Maurício Correa, ministro da Justiça, morto de bêbado, convidou uma garota, Lilian Ramos, pra subir no palanque. Ela beijou o rosto do Itamar e levantou os braços. A saia subiu e apareceu a genitália. A foto está em todos os jornais do mundo.
— E qual é o motivo da tristeza?, perguntei. Só porque a garota mostrou o prequito. Conheço essa garota. É uma modelo cearense. Não faz mal a ninguém. E o Itamar, num país homofóbico, tem a maior fama de baitinga. Vai melhorar muito a imagem dele.
— Você acha, Paulo? — perguntou pulando do sofá.
— Claro, deixa de bobagem, Aparecido. Eu entendo de marketing político.
O embaixador se animou. Tomamos um vinho. Comemos um Arroz de pica no chão, um arroz com galinha à cabidela. O Itamar tirou o Brasil do buraco. Foi um dos mais sérios presidentes que tivemos. Já esse falso moralista que está aí…
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