Logo O POVO+
A última cantora cult
Foto de Paulo Linhares
clique para exibir bio do colunista

Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

A última cantora cult

A garota que enxergou o abismo de Karol Conká Dolorepere molor as Bissinit nahakid
Karine Alexandrino: reclusão interativa e criativa no sertão  (Foto: Marilia Oliveira/ Divulgação)
Foto: Marilia Oliveira/ Divulgação Karine Alexandrino: reclusão interativa e criativa no sertão

.

Cult, originalmente, era uma palavra traduzida do inglês que designava as pessoas cultas. O termo, no entanto, com o tempo, passou a ser empregado como consequência do culto de uma obra pelo seu público no universo pop. Karine Alexandrino é uma das raras artistas brasileiras em que essas duas pontas intrínsecas e externas ainda se juntam.

Ela é uma artista de alto repertório intelectual, conteúdo artístico inovador e permanente capacidade de transgredir. Sua obra provoca um estranhamento pela sua exacerbada sensibilidade e discurso político fora dos padrões.

Seu público, até hoje fiel, é composto de comunidades espalhadas pelo país comprometidas com a revolta existencial e estética que ela promove, o que os estudiosos dos fenômenos culturais chamam de canonização alternativa.

Fomos conversar com Karine Alexandrino, que vive atualmente sozinha na fazenda do seu avô, no alto sertão dos Inhamuns, um espécie de auto exílio à la Belchior. Só que como os tempos são outros, ela quebra o silêncio em lives que chama genialmente de "stand-up tragedy".

Karine foi uma menina criada entre o sertão dos Inhamuns (nessa fazenda do seu avô em que hoje vive) e nas praias de Amontada, onde sua mãe nasceu.

Depois, foi viver em Fortaleza, e começou a fazer direito da UFC até descobrir um caminho torto e sem volta: criou com com um grupo de amigos (Antonio Martins, Ricardo Kelmer e Flávio Rangel) uma banda que fez história "A intocáveis Putz Band".

Com o sucesso da banda, ela fez uma carreira meteórica lançando três discos solos : Solteira Producta (2002), Querem acabar comigo, Roberto (2004) e Mulher Tombada (2015). No auge da agitação musical em São Paulo, ela criou uma ação de happening (a mulher tombada) em que caía nos pés de artistas, escritores e filósofos. Algumas dessas características da performance de Karine foram copiadas por ninguém menos que Karol com Conká.

Karine estrilou no seu estilo bombástico. Karol, que já era uma cantora do star system, entrou com um processo contra Karine por difamação. Karine ganhou o processo, mas saiu cansada, humilhada, insultada pelos advogados e pela máquina de produção da cantora Curitibana (sempre Curitiba).

Depois desse imbróglio ela casou, teve um filho e se manteve longe de tudo.

Agora, ela planeja sua volta com o disco "Dona dos abismos", em que ironiza seus tombos e faz as lives transcendentais etc e tal…

Eu falei Belchior, mas Karine, com seu isolamento nos Inhamuns e sua produção criativa incessante, está mais para Hilda Hilst. Sim, essa menina nasceu para desafiar o coro dos contentes e saltar todos os abismos que esse Brasil miserável lhe apresenta.

Leia a entrevista de Karine Alexandrino e assista seu último stand-up tragedy: como identificar um picareta no O Povo mais.

Entre o direito
e o torto artístico

K: Fiz vestibular com 16 anos. Entrei em Direito na Federal (UFC). Não me formei. Falei para meu pai: "Quero ser cantora". Fui apadrinhada pelo estúdio do Amaro Pena e do Airton Montezuma. Trabalhei 10 anos fazendo jingles, locuções, dublagens. Viajei para São Paulo para publicidades como atriz. Fui para Recife fazer trabalhos com Reginaldo Rossi. Fiz peça no Rio de Janeiro, a biografia do Raul Seixas, e passei temporada lá. No musical com o Roberto Bomtempo, fazia a Wanderléa. Mandaram passagem, fui, com R$ 50 no bolso, morar no Leblon. Uma coisa foi chamando a outra. Já fui para lá cantando e tocando. Surgiu a Intocáveis Putz Band, uma banda performática que hoje seria execrada, politicamente incorreta, com Antônio Martins, Ricardo Kelmer e Flávio Rangel. Tinha paixão e garra de fazer um trabalho diferente. Era profissional, com produtores. Tivemos uma visibilidade, era uma banda autoral. A gente fazia nossas letras, enquanto o pessoal fazia cover. Depois inventaram o "movimento da cena autoral".

Primeiro e segundo disco

K: Depois da Intocáveis, consegui a oportunidade de um edital para fazer meu primeiro disco, me lançar como cantora e compositora. O "Solteira Producta", produzido pelo Fernando Catatau, foi lançado em 2002. Um único CD eu entreguei na Feira da Música, para uma pessoa que levou para o Alex Antunes, que na época era da (revista) Bizz e me chamou para fazer parte do Festival Contradição, no Sesc Pompeia. Ele misturou quem estava começando com pessoas do patrimônio da música, como Elza Soares. Os caminhos se abriram. Consegui uma distribuidora, a Tratore. Fiquei 20 anos praticamente morando em São Paulo. Circulava por todos os ambientes artísticos. Recebi o convite para fazer, pela Tratore, o segundo disco, "Querem acabar comigo, Roberto". Não tenho cópia. Vejo para vender hoje, na internet, o físico por R$ 200, R$ 300. O conceito musical, junto às letras, me deu muita abertura.

"Mulher tombada"

K: A "Mulher Tombada" surgiu como um happening. Uma vez, fui entrevistar Gilberto Gil, eu fotografava, entrevistava, tudo ao mesmo tempo. Ele disse: "Menina, tu quer fazer tudo? Vai enlouquecer". Dito e feito… Tive distúrbios alimentares, síndromes de pânico. Me deitava no chão e me tremia todinha. Comecei a fazer isso nos locais, nas bienais, na TV. Não tinha ainda a coisa desagradável que há hoje do tombo. Eles achavam (o público) que era algo de brincar com a ideia do fracasso, da queda, com a possibilidade de entregar os pontos. Tu tá lascado aí, vamos logo aqui cair no chão e começar do zero. Tinha mais a ver com o ato de rebeldia.

Polêmica com Karol Conká

K: O disco "Mulher tombada" ficou parado por 10 anos, porque tive filho. Comecei a receber enxurrada de mensagens de todo lugar do Brasil. Foi uma coisa assim: "Os gays dela brigaram com os meus gays" (risos). Depois que eles ficaram de atrito, nós entramos na briga (risos). Ela usou a coisa do "tombo". Conversei com especialistas em propriedade intelectual. A Márcia Tiburi (filósofa e escritora) foi minha testemunha. Ela e outras pessoas envolvidas defendiam que era um processo de plágio, de crime. Ela (Karol Conká) quis me processar por difamação. Saiu em jornais. Ela usou o "se for pra tombar, tombei" e o sentido do tombo. Me processou por uma questão pueril, porque não tinha necessidade. Foi em meados de 2014. Um processo de 200 páginas. Terminou e ela perdeu. Na época, ela e a equipe me colocaram como se eu fosse uma pessoa que pegasse carona nos outros, "uma cearensezinha qualquer". Fui tão humilhada na audiência primordial. Durante o BBB, foi outra enxurrada de pessoas dizendo "você tinha razão". Esse processo foi traumático.

Quarto disco e as lives: como identificar um picareta

K: Tô fazendo o quarto disco, o "Dona dos Abismos". Pensei: vou sair debaixo do chão e vou trabalhar vendendo abismo, na especulação imobiliária do abismo. Estou compondo, esperando uma oportunidade, porque quero voltar com o Catatau… Cheia de problemas, falei: "Vou sublimar, fazer umas lives". A live "Como identificar um picareta" tem de tudo, indireta pra todo lado. Barra pesada! A questão do plágio, do caráter, com produtor cultural, psicanalista, para falar porque a pessoa falseia tanto e quer parecer ser. Os millennials, que falo "milendias", não têm relacionamentos, eles desaparecem.

Novos projetos

K: Nesse momento, faço muitas coisas, produzo muito, estudo bastante. Voltei manca de Fortaleza, torci o joelho. Quero comprar uma bengala chique para terminar de fazer o tratamento. Quero fazer tipo uma personagem, andar com essa bengala, fazer o disco… Escrevi um livro de poemas, "Na próxima vez, será espetacular", que é uma frase do segundo álbum. Um livrinho curto, estou procurando uma maneira de imprimir. É o início de um relacionamento, de uma paixão, com desenvolvimento precário, porque o amor é um desejo irrealizável mesmo. Depois, tem o óbito, a frustração de uma paixonite.

Não quero mais ser underground

K: O pessoal diz assim para mim: "A cantora underground". Porque sou lisa! Não quero mais ser underground, quero ganhar algum dinheiro! (risos). Espero o pior em tudo (risos).

Retiro nos Inhamuns

K: Sou uma legítima Alexandrino. Adoro estar aqui, na casa que tem 150 anos, a paisagem, os animais. Acordo às 5h30min, tomo logo um café para arrebentar o estômago. É um lugar de produção. Graças a Deus, meu processo criativo está inabalável, apesar de todas as loucuras. A gente ter sobrevivido da Covid é um milagre… Estou viva, que ótimo! Posso fazer outro disco.


 

Foto do Paulo Linhares

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?