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É tudo mentira, Orson Welles
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

É tudo mentira, Orson Welles

Cineasta do filme "A Jangada de Welles" diz que "o boy genial de Hollywood" não entendeu nada da vida do jangadeiro Manuel Jacaré
Firmino Holanda na casa que mora desde os dois anos de idade. Na fotografia, o cineasta e móvel, estatueta e quadro pertencentes aos seus avós, William Watson e Maria Gurgel (Foto: Bárbara Cariry/Acervo Firmino Holanda)
Foto: Bárbara Cariry/Acervo Firmino Holanda Firmino Holanda na casa que mora desde os dois anos de idade. Na fotografia, o cineasta e móvel, estatueta e quadro pertencentes aos seus avós, William Watson e Maria Gurgel

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Firmino Holanda e Petrus Cariry detalham a lendária visita de Orson Welles ao Ceará em junho de 1942, no recém-lançado longa "A Jangada de Welles". Welles, o boy genial de Hollywood como o define Firmino, veio filmar no Brasil, numa jogada diplomática dos americanos, porque o Brasil vacilava de que lado ficar nas vésperas da Segunda Guerra e Getúlio tinha simpatia pelo nazi-fascismo. Welles resolve filmar o samba e os jangadeiros cearenses.

Chegando no Ceará, ele seduz o líder jangadeiro cearense Manuel Jacaré e o convence a refazer a lendária viagem ao Rio de Janeiro que ele um dia havia visto na capa da revista Time. Jacaré repete o feito. Só que nessa versão, ao chegar na Praia de Copacabana, escorrega da jangada inexplicavelmente e morre afogado.

Há quem ache um simples acidente. Eu não acho. Tenho como a mais completa metáfora das relações colonizadores/ colonizados. Welles tinha uma visão idealizada dos jangadeiros, diz Firmino Holanda. Nessa visão, digo eu, eles eram seres desprovidos de estatuto político e reduzidos aos seus corpos biológicos.

Firmino Holanda é historiador, roteirista, diretor e crítico de cinema (trabalhou 16 anos no O POVO) com uma qualidade rara: ele interpreta e cria a partir de uma memória histórica atualizada. Ele próprio parece ter saído de um filme de Welles. Mora sozinho numa velha casa no Centro de Fortaleza em que morou com seus avós e seus pais. O quarto em que trabalha, viveram e morreram sua avó e sua mãe.

Mas Firmino não é cinéfilo excêntrico. Ele era um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones. Tocava violão e guitarra. E até foi reprovado por passar um ano inteiro entregue às manobras de caratê. Foi na atmosfera cinematográfica em que preserva a memória da família e seus fantasmas que criticou Welles, disse não ter obsessão pelo gringo, e numa prosa ágil e bem humorada, mostrou como ajudou a converter a nossa historia do cinema numa produção cultural criativa e radical.

Na abertura do seu "Verdades e Mentiras" (1973), Welles diz:

— Senhoras e senhores, esse é um filme sobre trucagem, fraude… É um filme sobre mentiras. Toda história, seja ela contada em frente a uma lareira ou em um filme, é quase sempre, e quase com certeza, uma mentira.

Essa entrevista é uma pequena introdução ao mundo de verdades e mentiras de Welles e de Firmino.

Avô inglês, casa de memórias e uma vida no Centro

F: Sou de Fortaleza, nasci em 1955, na avenida Dom Manoel. Moro na (rua) Dona Leopoldina, vim para cá com dois anos de idade. Era a casa dos meus avós, pais da minha mãe, filha única e adotiva. Meu avô era inglês, era da Ceará Gás Company. Engenheiro, meu avô, William Watson, casado com uma brasileira, Maria Gurgel, minha avó. Quando a Ceará Gás caiu, vieram para essa casa. Fiz dois filmes sobre isso: "Meu Caro Watson", um média quase longa, e o resumo dele, "A Balada do Senhor Watson". Ele morreu em 1957, de câncer. Papai cuidava dele. Quando ele estava para morrer, para não deixar a vovó só, viemos para cá. Pai, mãe e cinco irmãos. Vovó morreu em 1978. Papai morreu em 1992. Mamãe morreu sete anos depois. Nunca saí do Centro. Todas as minhas memórias estão aqui. Se você quiser me conhecer, é essa casa. Sou o memorialista da família. Nesse quarto aqui, faleceu minha avó e minha mãe.

O princípio do cinema cearense

F: Escrevi o livro "Do Sertão a Saturno: o Ceará no Cinema, de 1900 a 1940". Na década de 1920, Ademar Bezerra Albuquerque, que forma a sigla Aba (de Aba Film), fez o primeiro filme reconhecidamente cearense: "Temporada Maranhense de Foot-Ball no Ceará" (1924). Esse é perdido. O filme mais antigo preservado é um filme que o Paulo Sales encontrou em um arquivo no Rio, identificado como "Fortaleza de 1920". É um passeio pela cidade, tem no YouTube. A Sociedade de Fotografia se une à de Cinema e, em 1949, eles fazem o primeiro filme de ficção cearense, "Caminho Sem Fim", de Heitor Costa Lima, que inaugurou o Clube de Cinema de Fortaleza.

Ademar Bezerra, Chico Albuquerque e a inauguração da estátua de José de Alencar

F: Ademar conhecia meu avô. A foto de casamento dos meus pais é do Chico Albuquerque. Pesquisando para o "Meu Caro Watson", comecei a rever álbuns. Me deparei com uma série de fotos da inauguração da estátua de José de Alencar na Praça José de Alencar. Uma multidão, a estátua, e eu: "Por que meu avô tinha isso?". Tem até o Barão de Studart. Escaneei, ampliei a foto. Vi uma câmera cinematográfica. Um menino de calça curta, de bermudão, estava do lado dela, segurando um pacote na mão. Um homem agachado atrás dele. Era o Chico Albuquerque filmando com o pai a inauguração. Virou a capa do meu livro.

A Jangada de Welles

F: Sou pesquisador, costumo dizer, do Ceará no cinema. Sabendo do filme do Orson Welles, naturalmente, pesquisei. Tínhamos o jornal Nação Cariry, que virou revista. No segundo número da revista, eu tinha um texto sobre "Jacaré e Orson Welles na Praia de Iracema". Tempo vai, tempo vem, trabalhava no O POVO, vez por outra havia uma solicitação do editor: "Firmino, faz um texto sobre o Orson Welles no Ceará". Teve uma data comemorativa que fiz três páginas no Vida&Arte. Chegavam novos editores, como se fosse novidade: "Firmino, faz um texto sobre o Welles". Rapaz, tenho uns dez. No primeiro filme, "Cidadão Jacaré", sou eu mesmo, baseado no livro. Quando ganhei o edital, chamei o Petrus (Cariry) para dirigir comigo. Nesse novo filme, o Petrus tinha um prêmio para fazer um documentário. Ele insistiu para que eu fizesse com ele. No "Cidadão Jacaré", a gente fez com R$ 80 mil. Naquele tempo, já era pouco. Dessa vez, não. Ele quis fazer e me convenceu. Entrei nessa.

O herói Jacaré e o boy genial de Hollywood

F: O que a gente tem é a imagem mítica do cineasta de "Cidadão Kane", o "boy genial de Hollywood", e o herói que morreu tragado pelo mar (Manuel Jacaré). O Orson Welles teve uma visão de estrangeiro da nossa realidade. Ele idealizou uma coisa que não era assim. Porque a luta dos jangadeiros é uma luta em sintonia com a sociedade de Fortaleza. Uma luta política avançada. E não como é mostrado no filme, uma coisa espontaneísta. É lindo, perfeito. Uma obra-prima. Mas é idealizando o jangadeiro. Ele dizia que o Jacaré era um líder, quando ele morreu. Traduz a liderança de um herói, desbravador dos mares. Mas não vai a fundo no que é a miséria. Não revi mais o "Jangada de Welles". Estou fazendo um novo volume do livro. Descobri tanta coisa nova. Ampliei minha visão sobre sertão e mar. Se eu for assistir agora, vou ficar pensando: "Poxa, isso deveria ter entrado".

 

Filmografia

"A Jangada de Welles" (2019), longa

"Manuscritos da Lagoa Verde" (2011), longa

"Cinema Cearense: Alguma História" (1989), média

"Meu Caro Watson" (2016), média

"A Balada do Sr. Watson" (2017), curta

"La Muerte" (2006), curta

"Capistrano no Quilo" (2007), curta

"Kinetoscópio Mané Coco" (2008), curta

"Cidadão Jacaré" (2005), média

Em Super-8,
todos curtas:

"Irmão Jonathan" (1980)/

"Poste" (1980)/

"Exp.1. Animação" (1979)/

"Na Pele" (1979)/

"Exp-Oz-Om-Zoo" (1979)/

"Artigo 23" (1978), direção coletiva do Grupo Experimental de Cinema

Foto do Paulo Linhares

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