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Poeta das Cores: o cinema feito com restos da vida
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Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense

Paulo Linhares arte e cultura

Poeta das Cores: o cinema feito com restos da vida

Filme sobre Antônio Bandeira, de Joe Pimentel, reconstrói a vida do mais internacional pintor cearense
Tipo Notícia
Com extenso currículo,  Joe Pimentel é cinegrafista, editor e diretor de comerciais, documentários, curtas e longas (Foto: Arquivo pessoal )
Foto: Arquivo pessoal Com extenso currículo, Joe Pimentel é cinegrafista, editor e diretor de comerciais, documentários, curtas e longas

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Quando tinha 14 anos, Joe Pimentel descobriu que o cinema que frequentava, no bairro de Fortaleza de Otávio Bonfim, jogava no lixo, restos de filmes, fotogramas talvez censurados.

Passou a colecioná-los e imaginar cenas com eles."Descobri o cinema na lata do lixo",diz rindo.

Depois de uma experiência como cantor mirim no programa "Porque hoje é sábado", comandado por Gonzaga Vasconcelos, ele virou um cinéfilo obsessivo graças a um tio que era funcionário do Cine Diogo e lhe franqueava as entradas.

Passou a ver quase um filme por dia.

Pensando em estudar cinema, foi parar na Casa Amarela, adotado por Eusélio Oliveira.

A partir desse momento decisivo, o cinema entrou na sua vida.

Trabalhou em diversas produtoras e agências por 20 anos ininterruptamente como cinegrafista, editor, diretor de comerciais, documentários, curtas e longas.

Seu primeiro longa foi "Homens com cheiro de flor".

Uma experiência difícil, "nada deu certo" , diz ele.

Terminou adoecendo e passou por um transplante de fígado.

Mas o drama mostrou o que ele queria na vida. Conciliar o ofício de cinema para pagar as contas com a direção autoral e todos os seus riscos.

Veio a oportunidade de fazer o longa sobre o mais valorizado pintor cearense de todos os tempos: Antônio Bandeira.

Uma aposta do tamanho do valor de uma obra do pintor: cerca de meio milhão de dólares.

Bandeira morreu precocemente e inesperadamente, em Paris, após uma anestesia de uma simples operação na garganta, em 1967.

Não deixou entrevistas de TV, ou áudios e apenas um pequeno e enigmático curta foi feito sobre ele.

Joe teve que estudar arte para entender como aquele cearense saltou da linguagem figurativa para criar- no estilo que os críticos chamam de abstracionismo lírico - quadros de uma força inaudita que impressionaram o mundo.

Mas, se os conterrâneos e amigos já morreram, também os críticos pouco falam, pois paira uma desconfiança de pesquisadores e marchands em relação à entidade que administra o espólio do pintor. Isso porque o Instituto Bandeira certificou nos últimos anos cerca de cem obras cuja proveniência é tida como duvidosa. Um bom quadro de Bandeira vale hoje entre R$2 e R $4 milhões.

Ou seja: uma desconfiança de alguns milhões de dólares.

Decifrar a vida deste artista genial a partir de algumas poucas pistas e muitas dúvidas é o desafio enorme do menino franzino e engraçado que um dia achou fotogramas no lixo e começou a juntá-los criando suas próprias histórias.

"O cinema sem sofrimento não tem graça", sentencia Joe.

O cinema na lata de lixo

J: Meu pai é de Independência. Minha mãe, de Crateús. Vieram nos anos 1930. Aqui, ele virou corretor de seguros. Lembro quando eu ia no Centro, via uma multidão, e tava meu pai contando piada. Minha mãe trabalhava na Secretaria de Educação. A gente morava no Morro do Ouro. Ao lado, tinha um circo. Com 10 anos, a gente foi morar na Parquelândia. Lá, tinha o Cine Avenida, que chamavamos de Cine Pulguinha. Comecei a frequentar e vi um cara jogando negativo na lata de lixo. Descobri o cinema dentro da lata de lixo. É poético, mas é verdade. Comecei a pegar esses fragmentos, que devia ser censura de trecho de filme, música.

A música e o cinema

J: Em 1970, na televisão, eu ia cantar, no programa "Porque Hoje é Sábado", os sucessos da Jovem Guarda. Virei uma atração mirim. Um dia, antecedi uma apresentação do Roberto Carlos. Me botaram para cantar com a Maria Zenaide, que até foi embora, cantou no Silvio Santos. Fiquei apaixonado. Só que ela que tinha um vozeirão da porra. Ela tomou meu lugar. Me deram as contas! Meu irmão comprou uma câmera Super-8, eu ficava brincando. Quando não, pegava uma caixa de fósforo, arrancava o fundo e imaginava estar filmando através da moldura. Minha mãe morreu, eu tinha 14 anos. Um tio meu era gerente do Cine Diogo. Fui afogar as mágoas dessa tristeza infinita da perda da minha mãe no Cine Diogo. Podia assistir a filmes censurados, entrava nas entocas, assistia dentro da sala de projeção. Era compulsivo. Via uma média de 300 filmes por ano.

Cinema profissional

J: Com 17 anos, fui para o Conservatório de Música. No vestibular, fiz para Comunicação na UFC. Levei pau! Passei dois anos no Rio. O Stélio Valle me chamou. Quando voltei, cheguei a fazer vestibular para Música. Arranjei um trabalho na Norton Publicidade, com Adauto e Dodora. Conheci a Casa Amarela. O Eusélio foi com minha cara, me chamou para ser bolsista. Fui para São Paulo fazer cursos de fotografia. Comecei a trabalhar. O primeiro grande filme foi "Luzia Homem" (1988), de Fábio Barreto. Fazia assistência de câmera. Descobri o cinema como mentira mesmo, lembrando daquela coisa do Fellini. Essa porra do cinema verdade. "Luzia Homem" desconstruiu completamente. Eu disse: "Porra, o cinema é uma construção, quando você manipula na edição, a visão do diretor e tal".

Operário do audiovisual

J: Virei um operário do audiovisual. Passei 20 anos filmando todo dia. Era tão cotidiano, um negócio meio automático. Não tinha mais aquela parada romântica de estar trabalhando com imagem e de se achar o cara mais interessante do mundo. Era uma profissão. Na publicidade, ao contrário do que eu achava, e que eu acho que algumas pessoas têm um preconceito grande em relação a isso, que acham que você tá só reproduzindo ali o que os caras criaram e os clientes desejam. É a maior balela isso. Você tá todo tempo tendo que encontrar soluções dos roteiros mal resolvidos. Era um desafio. Fazer muito documentário… Pude viajar, rodei o Brasil. A busca por trabalhar com audiovisual tem a ver com a oportunidade de viver realidades complementares à minha.

Cinema autoral e o cinema como desafio

J: Há 20 anos, criei uma produtora com uma amiga, a Belinha, do Piauí: a Trio Filmes. Começamos a entrar em projetos, editais, parcerias com Armando Praça e Roberta Marquez, docsTV e filmes do Glauber Filho. O Tiago Santana (fotógrafo) começou a falar: "Vamos fazer teu filme". Os dois primeiros que fiz deram certo para caralho: "Retrato pintado" e "Câmara viajante". Foram para festivais do Brasil e do mundo, mais pelo tema da fotografia em extinção e as novas tecnologias surgindo. Fiz "Bezerra de Menezes", com o Glauber, e "A Invenção do Sertão", com Armando Praça. "Homens com Cheiro de Flor" foi minha primeira tranqueira de fazer um longa ficcional. Ficou parado, tenho um problema jurídico. O cara (roteirista) me processou. Se passa em torno de quatro pistoleiros de aluguel. Comecei a mexer no roteiro dele. Eu tinha R$ 1 milhão para fazer. O cara escreveu um filme de R$ 8 milhões. Sequência para caralho, 40 e tantos personagens… Foi desgastante.

Filme do Ceará Sporting Club

J: A gente começou a fazer um filme do Ceará Sporting Club, que vai ser lançado até o final do ano. Faz oito anos que estou fazendo esse filme com o Wolney Oliveira. Não tem fim nunca! Duas cabeças pensando. Eu, com minha leitura de torcedor, e o Wolney, que não tinha nada a ver com futebol. Enfim, a gente tá empurrando esse filme com a barriga há muito tempo.Agora vai sair.

Antonio Bandeira: ano é marcado por centenário de nascimento do artista (Foto: Arquivo pessoal )
Foto: Arquivo pessoal Antonio Bandeira: ano é marcado por centenário de nascimento do artista

O desafio de decifrar Bandeira

J: Em 2019, comecei a fazer o filme e percebi a dificuldade. O cara morreu há 50 anos. Praticamente não tem contemporâneo dele. Não tem áudio, matérias de TV. Tem um filme do José Maria Siqueira, bem pequeninho. Quando começava a conversar com as pessoas, havia uma folclorização. Um cara sai daqui em 1945, pós guerra. Chega na França, consegue acontecer. Volta trazendo uma nova linguagem, com abstracionismo lírico, consegue emplacar. Torna-se uma figura importante nas artes plásticas brasileiras. Mas os fatos que se contavam sobre o Bandeira eram só coisas pitorescas. A fundo, não correspondia à realidade. O Banbryols(um movimento artístico que Bandeira criou) é muito mais um delírio de tentar dar importância. O grupo ter existido ou não, vai mudar porra nenhuma. Não existe documento, nenhuma coisa comprovada.Enfim, é um personagem complexo. Estou tentando fazer um filme que conta a história desse cara, a trajetória na França, a vinda para o Brasil, a inserção no contexto cultural e o legado da obra, com explosão de cores. Tenho duas horas de filme editado. Se eu tivesse fazendo um filme com um artista figurativo, talvez facilitaria. No abstracionismo… Uma coisa é você estar numa exposição e contemplar uma obra do Bandeira. Outra coisa é você pegar e colocar numa tela. A exaustão de obras abstratas. É isso que tá me dando essa angústia.

Poeta das Cores

J: Tem fala levantando a história do tipo físico, do indígena, do negro. A coisa dele com a fotografia. Ele fez um marketing muito bem da imagem. Era um cara intelectualmente desenvolvido, escrevia. Tem um cara que conviveu, de fato, com Bandeira. Foi o Flávio Shiró, que mora em Paris. É importantíssimo, porque todo mundo que fala é na perspectiva de quem estudou. O Zé Tarcísio conheceu ele quando era menino. Tem um depoimento que fala que todo mundo era apaixonado por ele, homens e mulheres. O negócio da falsificação foi outra dificuldade. Ninguém quer falar porque achavam que o filme, que é independente, era do Instituto Bandeira. Há uma limitação. A minha ideia é condensar, transformar em 50 minutos, e ter cuidado para não ficar provinciano. Tenho que lutar para não ficar um filme de muita fala. É uma descoberta. Nas entrelinhas, ajuda a compreender a história da arte moderna no Brasil. Tenho que terminar até o fim do ano. Vou nem fazer campanha nem porra nenhum para "poder cuidar". Enfim, vivendo essa fase angustiante. Mas, assim, essa coisa de fazer audiovisual, para mim, sempre foi uma angústia. O cinema, sem sofrimento, não tem graça.

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Foto do Paulo Linhares

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