
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Paulo Sérgio Bessa Linhares é um antropólogo, doutor em sociologia, jornalista e professor cearense
Mário nasceu e foi criado até os dez anos num lugar chamado Tabajaras, no Aquiraz. Cresceu, menino livre, entre as linhas de pesca do avô e as linhas dos bordados da mãe e da Igreja Matriz de São José de Ribamar, construída no século XVIII. Sua mãe Alzira Sanders foi sua primeira professora de desenho. Seu avô, Seu Fransquim, lhe ensinou a olhar o céu e as linhas no mar. O sagrado e o profano — no jargão antropológico.
Um dia este equilíbrio se desfez e sua mãe teve que enfrentar a cidade grande, Fortaleza, e as suas asperezas. Mário enfrentou as misérias da vida adulta com tudo que aprendeu entre essas duas linhas. Sua capacidade de fazer renda, bordar, fazer rede de pesca, marcenaria de brinquedos o transformou num dos mais geniais designers e diretores de arte do País.
Como todo artista que resolveu ficar no campo cultural asfixiante e precário do Ceará, teve que se dividir entre ganhar dinheiro na publicidade e sonhar com as artes plásticas (adoro esse termo que um dia foi abolido). Na publicidade, foram centenas de campanhas vendendo de carro a biscoito. Nas artes, a partir da estreia coletiva num dos grupos mais emblemáticos da história do Ceará, o Fratura Exposta, foram cinco exposições individuais.
A última, "O Céu como Limite", você ainda pode visitar na Unifor.
Lá, você pode ver e sentir as histórias da vida de Mário Sanders traduzidas ao longo do seu percurso artístico. É uma exposição que nos deixa embebido de uma aura de alteridade. Nos transportamos para o mundo de Mário. A cada obra, a caixa de pandora de referências se abre.
Não é por acaso que a exposição é um dos maiores sucessos da Unifor nos últimos tempos. Como disse o poeta Leminski: "Não fosse isso era menos/Não fosse tanto era quase". Leiam abaixo a vida de Mário contada por ele e depois vejam suas artes e histórias com seus próprios olhos.
Vida entre linhas
M: A família da minha mãe é Albano de Castro. Minha avó fazia renda, raspava mandioca. Meu avô pescava e era agricultor, fazia tarrafas. Eu tinha um bisavô que trabalhava com madeira, recuperava os santos da Igreja Matriz do Aquiraz. Minha mãe, Alzira, foi quem me deu as primeiras aulas de desenho. Toda menina daquela época, aos dez anos, já fazia renda. A renda de bilro era um trabalho. O bordado era uma atividade mais caseira. Vivi nesse universo, entre linhas: das tarrafas do meu avô e das rendas. Meu pai, do Paracuru e que tem o sobrenome Sanders, era muito ausente. Foi ele quem trouxe a gente para Fortaleza. Depois, largou a gente. Mesmo depois que saí de lá, todas as férias, voltava. Os hábitos de comer pirão, de fazer tapioca, a casa de farinha… Era muito parecido com a cultura indígena.
A dificuldade em Fortaleza
M: Foi terrível. Em 1970, a gente veio na proposta do meu pai de "agora vai dar certo". Ele era muito mulherengo, de casa de jogo. Foi ser barbeiro, num salão tradicional do Centro. No Bairro Ellery, começou a ruína. Depois, a gente foi morar no Monte Castelo. Meu pai separou da minha mãe, que na época lavava roupa. A gente voltou para o Bairro Ellery quando ele foi embora. Fomos morar com uma irmã da mamãe. Minha avó também veio. Uma casa com três cômodos. A mamãe teve três filhos: eu, Rita e Jorge. Ela fez um curso de auxiliar de enfermagem, começou a trabalhar. Fomos de bairro em bairro: Jardim Iracema, Aerolândia, Pedras. A gente foi morar no Conjunto José Walter, não tinha água nem transporte.
Encontro com a arte
M: Desenhava direto, fazia revista em quadrinho, brinquedos, carro de madeira, de lata, reciclava do lixo. Fui fazer um curso com Dante Diniz (1957-2018), no Centro Comunitário Adauto Bezerra. Comecei a ter um acompanhamento mais artístico.
Fratura Exposta
M: Em 1985, veio o Fratura. Tinha uma galera que frequentava os cursos lá no Dante. Fizemos uma festa para arrecadar dinheiro e comprar telas. Queríamos fazer uma exposição. Fomos à Secretaria da Cultura, falamos com Roberto Galvão à época. Conseguimos, na marra, os patrocínios. Foi um sucesso estrondoso, ali perto da Praça dos Leões. Um trabalho de performance, com som do Pink Floyd muito alto. Apagamos todas as luzes. Quando abria a porta, tudo no escuro, a gente saia com tela pegando fogo. Não tem registro. Siegbert Franklin ia fazer uma exposição na Ignês Fiúza e nos convidou para fazer uma performance. Veio o convite da Dodora para expor. Ela já tinha a Arte Galeria, onde era o ateliê do Sérvulo Esmeraldo. O grupo só durou um ano. Eu, Cardoso Junior, Jorge Luiz, Sebastião de Paula, Kelson Teles e Assis Castelo Branco.
Primeiros trabalhos
M: Já trabalhava com a questão de gênero, essa coisa do homem com a mulher... Em 1985, ganhei o Salão de Abril. Fui premiado na Unifor Plástica. Minha primeira exposição individual foi em 1988, "Performance Urbana", na Tukano Galeria, com desenhos simulando pessoas. Eram só roupas, não tinha cabeça, não tinha braço. Comecei a trabalhar no O POVO em 1986. Implementei a ilustração de matérias, que Folha, Estadão e Correio Braziliense já tinham. Fiquei até 1988. Continuei fazendo trabalhos para a Fundação Demócrito Rocha (FDR). Em 1989 ou 1990, o Nilton Trança estava na Mark, agência do Nazareno Albuquerque, e me perguntou se eu não queria fazer um estágio. Fiquei na direção de arte. A segunda exposição foi no Mauc, em 1990, "Desculpe". O título era de uma música do Arnaldo Baptista. Fui para a CBC (uma agência de propaganda), onde conheci a escritora Clarisse Ilgenfritz. Em 2004, fui trabalhar na campanha do Camilo. Depois, fui voltando à arte. Fiz uma exposição, "Híbrido", em 2016, na Contemporarte.
Bordado artístico
M: Em 2017, fui dar aula em um curso num projeto do Júlio Lira. Ele dava aulas de bordado para senhoras e queria implementar o desenho no bordado. No começo, elas não queriam desenhar. Em casa, comecei a fazer desenhos e bordados. Levei o primeiro e perguntaram quem tinha feito. Eu disse que tinha sido eu. E elas: "Nossa, tá incrível! O senhor bordava e nunca falou pra gente?". Eu disse: "Nunca bordei". E elas "E como o senhor conseguiu fazer isso?". "Para mostrar que é possível vocês desenharem". Tomei gosto. De 2017 até agora, passei a bordar direto. É um bordado beirando ao realismo, demora para caramba.
Exposição na Unifor
M: "O Céu como Limite" é a quarta exposição individual. A exposição "81/18", na Galeria Leonardo Leal, é outra individual (a quinta, que ficou em cartaz até 22 de julho). A da Unifor vai até 7 de agosto. Aquele trabalho do Oratório tem minha vivência na Igreja de Aquiraz. Essa coisa do sagrado e do profano o tempo todo na minha vida. Ia para igreja, com cinco ou seis anos. Assistia à missa e ficava olhando para os santos no teto, imaginando os santos nus. Morria de vergonha de falar para alguém, era pecado. Comecei a fazer o Corpo Santo. Trabalhei um corpo híbrido: tem os peitos, mas tem a piroca. Aparece o ponto chamado rococó ou nó francês, que dá uma textura linda, e essa cor avermelhada, como se fosse a parte interna do corpo. Em 2019, pintei uma tela em homenagem à minha irmã que morreu, Mônica, que passei a chamar de "Vaga Lembrança". Tem a história dos meus irmãos que morreram. Minha mãe, há um ano, teve um AVC. Peguei a almofada dela e estou querendo reconstruir e algumas rendas que ela fez. A Izabel Gurgel, curadora, fez eu entender que essa exposição tinha muito a ver com minha família. Estou fazendo bordado agora, depois de velho, mas o bordado já estava dentro de mim.
Balanço da trajetória
M: Meu trabalho esteve perto da literatura, apesar de eu ser um cara que não leu muito. Mas a poesia sempre esteve presente. A minha vida no O POVO foi fantástica. E a publicidade foi muito importante, me deu profissionalismo. Estou pensando, agora, num trabalho imenso. É um bordado com pessoas construindo o mapa do Brasil. Um trabalho de, no mínimo, quatro meses. Vários bordados pequenos que compõem um mapa do Brasil. A exposição da Unifor tem toda minha trajetória. Soube, na semana passada, que a exposição foi o maior sucesso de público dos últimos anos. Não esperava que minha história pudesse mexer tanto com as pessoas.
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